Capítulo Nove

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Por anos, Dorian Gray não pôde se libertar da memória desse livro. Ou, talvez, seria mais preciso dizer que ele nunca procurou se libertar dele. Ele solicitou, de Paris, nada menos que cinco cópias em tamanho grande da primeira edição e as encadernou em cores diferentes, para que pudessem combinar com seus vários humores e mutantes fantasias de uma natureza sobre a qual ele parecia, às vezes, ter perdido inteiramente o controle. O herói, o maravilhoso jovem parisiense, no qual o temperamento romântico e o temperamento científico eram tão estranhamente mesclados, tornou-se uma espécie de tipo imaginado de si mesmo. E, de fato, todo o livro parecialhe conter a história de sua própria vida, escrita antes que ele a vivesse.

Em um ponto, ele foi mais afortunado do que o fantástico herói do livro. Ele nunca teve – nunca, de fato, tivera algum motivo para ter – aquele certo temor grotesco de espelhos e superfícies de metal polido, e ainda a água, que se abatera sobre o jovem parisiense tão cedo em sua vida e foi ocasionado pela súbita decadência de sua beleza que, uma vez, aparentemente, foi tão notável. Era como uma alegria praticamente cruel – e, talvez, em quase todas as alegrias, tão certamente quanto em todos os prazeres, a crueldade tem seu lugar – que ele costumava ler a parte final do livro, com seu realmente trágico, senão exagerado, relato sobre a tristeza e o desespero de alguém que perdera aquilo que, nos outros e no mundo, ele mais apreciava.

Ele, de qualquer forma, não tinha motivo para esse temor. A beleza adolescente que tanto fascinara Basil Hallward e muitos outros depois dele, parecia nunca deixá-lo. Mesmo aqueles que ouviam as piores coisas a seu respeito (e, de tempos em tempos, estranhos boatos sobre seu modo de vida espalhavam-se sobre Londres e tornavam-se assunto principal nos clubes) não podiam acreditar em nada que o desabonasse quando o viam. Ele tinha sempre o ar de quem se mantinha imaculado do mundo. Os homens de fala grosseira se calavam quando Dorian Gray entrava na sala. Havia algo, na pureza de seu rosto, que os reprovava. Sua simples presença parecia lembrar-lhes da inocência que eles maculavam. Eles se perguntavam como alguém tão encantador e gracioso como ele poderia escapar da mácula de uma época que era, por usa vez, sórdida e sensual.

Ele mesmo, ao retornar para casa de uma dessas misteriosas e prolongadas ausências que davam ocasião a tal estranha conjetura entre aqueles que eram seus amigos ou pensavam ser, subiria as escadas até o quarto fechado, abria a porta com a chave que nunca o deixava e, permanecia, com um espelho, em frente ao retrato que Basil Hallward pintara dele, olhando agora para o rosto envelhecido e mau na tela, e então para a bela e jovem face rindo-lhe de volta através do vidro polido. A própria agudeza do contraste costumava animar seu sentimento de prazer. Ele se tornava cada vez mais enamorado de sua própria beleza e cada vez mais interessado na corrupção de sua alma. Ele examinava com um cuidado intenso, e frequentemente com um prazer monstruoso e terrível, as abomináveis linhas que endureciam a enrugada testa ou se espalhavam pela forte e sensual boca, se perguntando às vezes quais eram os mais horríveis, os sinais de pecado ou os sinais da velhice. Ele colocava suas mãos brancas ao lado das mãos grosseiras e inchadas do retrato, e sorria. Ele zombava do corpo deformado e dos membros derrotados.

Havia momentos, na verdade, durante a noite, quando, deitado insone em sua própria câmara delicadamente perfumada ou no quarto sórdido da pequena taverna de má fama próxima às Docas, a qual, com um nome falso e disfarçado, era seu hábito frequentar, ele pensava na ruína que trouxera sobre sua alma, com uma misericórdia que era ainda mais pungente porque era completamente egoísta. Mas, momentos como este eram raros. Aquela curiosidade sobre a vida que, muitos anos antes, lorde Henry tinha primeiro eriçado nele, enquanto sentavam-se juntos no jardim de seu amigo, parecia aumentar com a satisfação. Quanto mais ele sabia, mais desejava saber. Ele tinha uma fome insana que se tornava mais voraz à medida que a alimentava.

Mesmo assim, ele não era realmente impulsivo, de qualquer forma em suas relações sociais. Uma ou duas vezes em todos os meses durante o inverno e em cada noite de quarta-feira enquanto a estação durava, ele abria ao mundo sua bela casa e tinha os músicos mais celebrados do momento para encantar seus convidados com as maravilhas de sua arte. Seus pequenos jantares, em cuja arrumação lorde Henry sempre o ajudava, eram comentados tanto pela cuidadosa seleção e disposição daqueles que eram convidados, quanto pelo sofisticado gosto exibido na decoração da mesa, com seus sutis e sinfônicos arranjos de flores exóticas e toalhas bordadas, e louças antigas de ouro e de prata. De fato, eram muitos, especialmente entre os rapazes bem jovens, que viam ou imaginavam ver, em Dorian Gray a realização verdadeira de um tipo que eles frequentemente sonhavam em seus dias de Eton ou de Oxford, um tipo que deveria combinar algo da cultura real do acadêmico com toda a graça e a distinção e modos perfeitos de um cidadão do mundo. Para eles, ele parecia pertencer àqueles a quem Dante descreve como tendo se esforçado a “fazer de si mesmos perfeitos pelo culto à beleza”. Como Gautier, ele era aquele por quem “o mundo visível existia”.

O Retrato De Dorian GrayOnde histórias criam vida. Descubra agora