Capítulo 30

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Capítulo 30

Semanas se tornaram meses e eu tentei aproveitar cada mísero momento, mas ao redor da marca de sete meses, senti meu corpo escorregar, mesmo que meu espírito permanecesse forte. Eu sempre imaginei que morrer seria algo repentino que aconteceria sem que você percebesse, mas parecia mais como se estivesse me espreitando, me carcomendo. A morte era a sombra de uma tempestade que alcançava um campo de verão. A cada minuto, era um pouco mais escuro. Um pouco mais difícil de ver o sol.

O medo de desaparecer foi a única coisa que superou o medo de deixar ir. Eu sabia que era hora. O mesmo aconteceu com Estebán. E Zeca também. Até mesmo Alessandro se demorara naquela manhã a caminho da aula, que não era como ele agora que amava a escola e tinha amigos para ver. Leonard me dera um abraço naquela manhã sem nenhum motivo, quando passei por ele no corredor. Maurício me ligou.

Cem anos não seriam o suficiente para gastar com as pessoas que eu amava. Eu só tinha que encontrar uma maneira de dizer as palavras. Para dizer que eu estava pronto.

Naquela manhã, em vez de sair para lidar com os problemas mais recentes da matilha, como ele costumava fazer, Estebán ainda estava lá quando eu voltava de deixar Alessandro na escola. Ele estava sentado à mesa da cozinha com uma xícara de café intocada na mão e um cigarro pendurado na boca.

Ele proibiu fumar no prédio quando eu fui diagnosticado, e o fato dele estar fazendo isso significava que algo estava diferente. Hoje foi um fim ou um começo e as regras não eram mais aplicadas. Não neste espaço liminar entre a vida e a morte, esperando e temendo, alívio e arrependimento.

— Estamos fazendo uma viagem — anunciou Estebán, colocando o cigarro no café antes de se levantar. — Prepare as malas.

Eu balancei a cabeça e entrei no quarto para pegar uma jaqueta. O que mais você deveria levar para a minha morte? Até mesmo sapatos pareciam supérfluos, mas calcei um par confortável. Eu decidi que não precisava da minha carteira nem do meu telefone. O que quer que acontecesse, Estebán diria às pessoas que elas precisavam saber.

Nós tínhamos omitido aos outros a verdade sobre o nosso plano, tanto porque parecia injusto dar-lhes falsas esperanças e porque eu tinha tido tantas conversas difíceis com Zeca que eu não queria azedar a última vez que eu poderia vê-lo. Em vez disso, nós conversávamos por horas como costumávamos fazer, e eu queria que esse momento permanecesse assim em sua memória de mim.

Também passava horas conversando com Maurício. Eu senti que negligenciei tanto nossa amizade. É certo que depois de adultos a dinâmica entre amigos mudam. Mesmo assim eu me sentia um pouco protetor dele. Eu sei que ele conversou com Estebán entre a festa e agora. Eu queria que pelo menos uma pequena confiança nascesse entre eles. Para que meu amigo tivesse para onde correr se precisasse.

Segui Estebán para fora do apartamento e desci para a garagem. Ele ficou em silêncio no caminho e não fez nenhuma tentativa de me dizer para onde estávamos indo. Eu não perguntei, também.

O céu estava azul claro. Parecia que estávamos indo a um encontro romântico num parque ou para a praia. Enfiei a mão pela janela aberta e deixei o ar passar o vento pelos meus dedos, como sempre fiz quando criança.

Percebi que estávamos nos dirigindo para a estrada que vai para o sul. Eu sabia que a matilha tinha um sítio bem grande perto de Embu Guaçu. Era um lugar bonito, perto tinha uma cachoeira. Uma casa esparramada térrea pintada de azul. Eu não poderia imaginar um lugar melhor. E eu não conseguia imaginar mais alguém que eu preferiria segurar minha mão.

Eu olhei para Estebán quando ele finalmente parou o carro ao lado de uma estrada de terra fina, uma vez que nós chegamos o mais longe possível do centro da pequena cidade. Chegamos nas terras da matilha. Ele não disse uma palavra. Acabou por sair do carro e abriu a minha porta antes que eu tivesse tempo para fazer isso sozinho. Ele era rápido e eu estava muito mais lento hoje. Eu estremeci quando ele me ajudou a sair do carro. Meu corpo estava doendo ultimamente em cima de todo o resto, e não havia muitas partes minhas que não estivessem com dor. Pelo menos o ar fresco do mato enchendo meus pulmões tornava um pouco mais fácil respirar.

Morda-me (Lobos de São Paulo #01)Onde histórias criam vida. Descubra agora