Capítulo 22

238 41 86
                                    

Capítulo 22

Quando Zeca finalmente apareceu três dias depois, eu fiquei sem saber o que dizer, apesar de ter ensaiado o que eu diria quando tivesse a chance.

— Apenas me deixe falar — implorou ele, largando a mochila na porta enquanto Alessandro se escondia do recém-chegado.

— Ok — eu disse, decidindo que precisava sentar. Os remédios que o médico me deu nesse meio tempo estavam ajudando a reduzir a frequência dos episódios de tosse, mas eu ainda precisava me esforçar para não ficar muito cansado. Eu só esperava que ela tivesse algo mais forte para me dar para a caçada. Essa foi mais uma notícia divertida que eu ainda tinha que dar ao Zeca.

"A propósito, você conhece aquele cara que você acha que matou a mamãe? Eu estou acasalado com ele agora".

— Sinto muito por sair do jeito que eu fiz. O que você disse, isso ... — Ele franziu a testa, e era difícil dizer se o Zeca estava frustrado consigo mesmo ou comigo.

— Eu sei — eu disse gentilmente. —Talvez eu tenha cometido um erro ao dizer a você. Eu não estou orgulhoso da maneira como lidei com isso. Sei que falhei com você, e ainda estou tentando descobrir como protegê-lo quando não entendo esse mundo do qual você é parte.

— Você apenas me deixaria pedir desculpas? — Ele murmurou. — Eu sei que você está apenas tentando me proteger. — Sua expressão suavizou quando se sentou ao meu lado no sofá. — Você sempre faz desde que comecei a transição, mas você não pode. Não mais.

Ele estava se desculpando pelas palavras que tinha falado antes, mas essas foram as que partiram meu coração. Desde o dia em que o segurei em meus braços, saber que ele era meu irmão menor para proteger e cuidar era o maior fardo que eu já recebi e a maior honra. Eu tentei esquecer isso, essa conexão entre irmãos, e se eu não pudesse protegê-lo, o que diabos eu deveria fazer comigo? Foi um medo que passou pela minha cabeça muitas vezes, mas ouvir na voz dele foi um tapa na cara; a devastação absoluta.

— Eu nunca vou parar de te proteger, Zeca. Não até o dia em que eu morrer.

— Eu sei. Isso é o que me assusta — ele sussurrou. — Eu sei que isso é tudo um choque para você, mas eu acho que em algum lugar no fundo, eu sempre soube. Este mundo ... é estranho, mas de certa forma, faz mais sentido para mim do que aquele em que cresci. Eu sempre achei que não me encaixava porque eu era trans, ou talvez apenas porque eu era eu, mas agora eu conheço a verdade. Todos aqueles sonhos que eu tinha sobre correr na floresta; sentindo o vento em minha pele, se tornando algo mais do que eu era; eles não eram apenas sonhos. Eles estavam dentro de mim o tempo todo. O que a mãe escondeu de nós dois.

— Eu acho que ela estava apenas tentando te proteger, garoto. Você tem que entender isso. Ela cometeu erros e nos machucou, mas achou que estava tentando fazendo a coisa certa.

— Assim como todo mundo que já fez a coisa errada — ele disse amargamente. — Ela fugiu de suas responsabilidades e pagou o preço por isso.

— Zeca!

— É a verdade. Você não entende — ele disse, balançando a cabeça. — Você não é um lobo.

— Você também viveu toda a sua vida como humano, Zeca. Isso não é você.

— Sim, é — ele rosnou. — Isso é o que você não quer ver. Este sou eu. Eu não sei mais em quem confiar, e não sei onde eu pertenço, mas sei que pertenço à minha própria espécie mais do que já pertenci a sua.

As palavras doíam, mas eu podia sentir o quanto era difícil para ele dizê-las, então me obriguei a ouvir em vez de discutir; que era o que eu queria.

Morda-me (Lobos de São Paulo #01)Onde histórias criam vida. Descubra agora