3. Pode me mostrar a saída?

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Paris, 1885:

Sebastian se concentrava nas suas centenas de cartas espalhadas sobre a mesa redonda e velha, nos livros gastos das capas até às bordas dos papéis. Era raro ele ficar tão absorto em seus deveres quando o menino estava ali.

Mas Ariel não reservou esse tempo para questionar os problemas do padre, que podiam ser sérios, podiam não ser, ele já desistira de tentar compreender. Tinha seu próprio problema.

Levou os olhos para a janela da catedral, ali do alto tinha uma ampla visão do mundo do lado de fora da igreja. A chuva caía apenas gentilmente desde a manhã, sobre algumas cabeças que agora corriam apressadas, em grupos sorridentes e animados que não pareciam tanto assim quererem se abrigar.

Estudantes.

Uma pontada aguda o atingiu. Não era a primeira vez, mas nunca ficava mais fácil de aceitar. Como queria sair correndo dali, estar com aqueles jovens felizes e percorrer o mundo para onde quer que eles fossem. Até onde quer que o mundo chegasse, o que quer que fosse o mundo. Ele não sabia na verdade. Tudo que sabia era o que Sebastian lhe falava, o que Andressa lhe mostrava.

Mas ora, ele não devia estar agradecido por sua sorte selvagem? Aqueles jovens tão protegidos em suas mansões com lustres quando a noite chegava, lareiras quando o frio soprava nunca chegariam a experimentar do prazer que ele gozava ao sair nas caçadas com Andressa. Esperando invisíveis no alto das tavernas, estar pronto para o ataque quando algum humano bêbado ou tolo fosse cercado pelas garras enluvadas dos demônios, e daí mata-los com um só golpe da adaga brilhante, empalando-os pela garganta?

O inegável prazer de quando o sangue dos malditos espirrava na face, no corpo e nas vestes durava poucos segundos, mas era o suficiente para que fosse possível adora-lo. Bem possível. E do modo como ouvia desde sempre, Deus, quem tudo fez e criou permitiu que saboreasse essa sensação, instalando a alavanca invisível em seu corpo onde somente os demônios sabiam localizar. Ainda que em seu caso o ato a puxá-la fosse assassinato.

"Demônios se viciam em almas, pessoas comuns em sexo e bebida, e nós Ariel temos o direito de nos viciar em matar" Andressa dizia sempre que ele soava culpado por um corpo.

" Você só os manda para ele" Dissera por outro lado Sebastian, com ternura, quando Ariel voltou de sua primeira caçada. Estava chorando, estava assustado. O medo e a culpa qual o monstro embaixo da cama de sua infância eram maiores que qualquer sensação ainda desconhecida de vício momentâneo, instantâneo. Tinha apenas quatorze anos naquela época... Ou quase isso. Era novo demais para começar a entender essa espécie de prazer. "É ele, nosso Senhor de toda sabedoria que decide o que fazer depois, Ariel".

Suas mãos seguravam com força os pulsos do jovem trêmulo; e apesar da calma nas palavras, ele mesmo não parecia confortável em dize-las.

"Andressa é louca" Murmurou o padre em seu ombro, quase para si mesmo ao abraçar Ariel "Uma mulher perdida... Eu não vou deixar ela fazer isso de novo com você".

Lembrava que o homem observou por um tempo as lágrimas caírem de seus olhos azuis já avermelhados pelo choro. E então de abraçá-lo mais forte ainda.

Agora que ele ao menos era capaz de entender esse prazer, sem que Andressa ou Sebastian precisassem dita-lo como eles o entendiam, não deveria sentir-se o mais privilegiado dos jovens? Ele podia matar sem ser pego, era um aliado próximo do Senhor. Podiam até confundi-lo com um de seus anjos.

Se resolvesse fugir, não eram muitos os que iriam atrás dele. Ainda que soubesse que os poucos que o fariam poderiam chegar a bater nos portões do inferno para encontrá-lo. Mas ele sabia se esconder bem. E com isso viver nas sombras de um mundo que sempre seria novo, livre e vasto.

After AlgeaOnde histórias criam vida. Descubra agora