Curral de sangue

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A primeira coisa que sente ao acordar é o cheiro. Cheiro de merda, mijo e suor, tudo misturado. Não deixavam eles tomarem banho, o mais próximo que recebiam de um "banho" era um jato de água. Não era permitido gritar ou reclamar, se não arrancavam a sua língua, até mesmo isso valia lucro, já que muitos deles gostavam de comer línguas. Nenhum pedaço de carne humana devia ser desperdiçado. Maria não conhecia outra vida, a primeira memória que lembrava era do abatedouro em que nasceu, o mesmo que ela estava agora. Não havia como outras crianças humanas terem outro tipo de vida, afinal, as criaturas da noite tinham dominado o mundo há 81 anos. Dizem que tudo começou quando um psicólogo foi a chance de liberdade para o primeiro deles e bastou apenas uma guerra contra as criaturas para que os humanos estivessem acabados.

Maria ouviu eles chegando, era a hora da comida. Na maioria das vezes, eles jogavam legumes e verduras no curral dos humanos, mas quando um deles estava muito magro, uma das criaturas os pegavam e enfiavam um cano na garganta do humano, forçando o aumento de peso. Maria estava com medo disso acontecer com ela, pois nos últimos meses os mais velhos pegavam toda a comida para si e não dividiam com os mais novos. Então, ela estava seca como um osso, os braços finos e as pernas mais ainda, ela não queria ser alimentada por um tubo. Queria bolo de cenoura com chocolate ou hambúrguer com queijo, como nas histórias de Tatiana. Ela contava sobre o mundo antes de ser como é agora, contava sobre crianças da idade de Maria, de 8 anos, que comiam coisas gostosas, como doces e salgados. Ela apenas comia essas quando sonhava, comia até a barriga doer, não doía de fome, mas de comer muito.

"Eu não quero, vai doer, vai doer. Prometo que vou ser mais rápida pra pegar a comida, prometo!"

Duas criaturas chegaram na frente do curral sujo com suas asas negras assustadoramente grandes, os olhos vermelhos vasculhando o local para encontrar um animal esquelético que precisava ser engordado rapidamente, pois o cronograma não permitia atrasos no abate. Os chefes estavam cada vez mais intolerantes. Os animais estavam todos aninhados em um canto do curral, sentiam quando eles chegavam, a visão do tubo não era tranquilizante também, talvez o dobro de altura das criaturas em comparação ao humanos também não ajudava, mas não fazia diferença. Estavam ali para fazer o trabalho, não para sentir empatia pela comida. A criatura mais pálida escolheu um filhote extremamente magro, abriu o curral e foi em sua direção.

Maria estava torcendo para não ser escolhida, mas quando o vampiro a pegou no braço com suas mãos enormes e unhas afiadas, começou a chorar e a gritar. Lembrou que não podia gritar, então calou-se, ficou choramingando enquanto pegavam o tubo. Quando o enfiaram garganta abaixo e a comida começou a descer, ainda chorava, queria a mãe, mas sua mãe tinha sido levada para longe dela. Quando as criaturas foram embora depois de realizar alimentação forçada em mais dois humanos, Maria ficou deitada chorando baixinho. Se surpreendeu quando Leonardo descansou a cabeça dela em seu colo, fazia muito tempo que alguém não fazia isso. Imaginou eles num campo verde com flores e pensando como seria o cheiro de flores, pois nunca sentiu o perfume delas.

O dia seguinte era o dia de limpeza, limpavam o curral de toda aquela merda fedorenta e o mijo fedido, além de limpar os humanos. Esse dia acontecia mensalmente, era o dia favorito da Maria, a única semana em que ela, realmente, se sentia limpa. Tatiana dizia que antigamente as pessoas tomavam banho todos os dias, ela não conseguia imaginar. Tinha se acostumado com o fedor seu e dos outros, mas era bom sentir a pele limpa.

No outro dia, chegaram humanos novos, maioria da idade dela. Muitos não gostaram do local e começaram a reclamar e a chorar, não demorou muito para que a metade deles tivessem a língua cortada.

Não reclamaram mais.

Na semana seguinte, eles apareceram para levar alguns para o abate. Levaram os mais velhos, inclusive Leonardo. Quando o levaram, Maria se lembrou do dia que levaram Tatiana, ela queria chorar, berrar e gritar alto, mas não queria perder a língua, então ela apenas chorou em silêncio enquanto assistia Tatiana ser levada. Tudo foi tão rápido que nem deu tempo de se despedirem, eles apenas aparecem do nada e levam os humanos. Hoje eles estão levando os adultos e algumas crianças, mas Maria ficou absurdamente em pânico quando escolheram ela, mas não chorou. Uma das criaturas fez sinal para o colega dizendo para não levar ela porque ela estava doente. Assim, soltaram ela e foram embora com os outros. Maria estava se sentindo muito fraca e com o corpo muito quente, por isso decidiu se deitar, enquanto tentava respirar pela boca seca viu um adulto que estava no curral da frente fugir e correr. Ela se virou para ver melhor, Maria nunca tinha visto alguém tentar fugir e se ela tentasse também? A esperança durou pouco porque logo o adulto foi encurralado e capturado, se as criaturas não tivessem asas os humanos até poderiam ter uma chance.

Começaram a dar choque no adulto e o levaram para o abate, pouco tempo depois tudo estava como antes nos currais, mas ver a cena de fuga fez algo nascer dentro de Maria. Ela nunca tinha pensado na possibilidade de viver fora do curral, ninguém nunca tinha falado ou sugerido a hipótese, mas se há outros que tentam, por que ela não? Será que outros haviam tentado fugir e conseguiram? Onde eles estariam?

Esses pensamentos estavam preenchendo o coração de Maria de alegria, mas ela estava fraca demais para sorrir ou abrir os olhos, a desidratação tinha tomado conta do seu corpo. 

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