Cristina levava o bem mais precioso da casa em suas mãos.
Fiz questão que ela levasse apenas isso na mudança e me prestei a carregar todas as sacolas. Vigiei todo seu caminho do carro até a cozinha.
Ela detestou, Cristina tem alergia a delicadeza, apesar de atuar como um passarinho de tão leve.
—Por Deus, Gustavo. São apenas taças de vidro. Compro várias dessa por um preço baratíssimo se quiser.
Minhas taças eram únicas pra mim.
—'O que o seu marido gosta de fazer?', Ah, ele coleciona taças de vidro. Não é incrível?!
Cristina respirou fundo após se livrar do castigo. Em seguida, tratou de juntar minhas roupas em seu guarda-roupa.
De novo, apenas a cama que precisava ser de casal. Ela já tinha boa parte dos móveis. Vendemos o que se tornara desnecessário.
A casa não era muito grande, mas confortável para dois. Tudo era quase monocromático entre um marfim e um rubro, das janelas à cozinha.
—A pintura tá novinha ainda, vamos deixar assim.
O dia foi muito cansativo e ainda restavam coisas para arrumar. Não aguentamos e nos jogamos na cama nova. O som do plástico veio em seguida.
—Gustavo! Você não tirou o protetor do colchão?
—Mas se tirar estraga mais rápido.
Cristina não sabia se chorava ou se me mandava embora de sua vida. Como pôde se casar com alguém tão miserável?
—Agora posso ver o que o capitalismo faz com as pessoas...
Ver Cristina irritadinha me fazia rir. Mas a verdade é que eu só não tive tempo mesmo, não encontrei tesoura e ainda havia muitos móveis a serem ajustados. Joguei alguns lençóis em cima da cama e parti para a sala.
Descansamos por umas duas horas no colchão plastificado. Conversando besteira e sentindo a respiração lenta um do outro.
Pedimos uma pizza para terminar a noite. Cristina foi buscar o refrigerante com um sorriso malicioso. O que me deixou encabulado. Quem sensualizaria para pegar dois litros de refrigerante?
Algumas luzes se apagaram e a silhueta do meu amor surgiu com duas taças cheias de guaraná.
Eram as minhas taças. Pensei em discutir, obrigá-la a guardá-las, mas desisti. Suas curvas e seu sorriso malvado eram hipnotizantes.
—Vem, senta aqui no chão...
O sofá ficou vago. Nos sentamos no tapete com a pizza e duas taças em nosso meio.
—Será que vinho cai bem com pizza?
—Amanhã eu tenho trabalho, amor. Não podemos beber hoje. - Precisava fugir das más intenções de Cristina.
–Você tem trabalho amanhã, você não pode beber hoje.
Ela se levantou e trouxe duas garrafas de um merlot 2005, dado por seu diretor de teatro. Puxou o celular da mesinha e me entregou.
—Você sabe o que tem que fazer...
Revirei os olhos e comecei a digitar.
—"Alô, tudo bem? Amanhã não poderei ir ao trabalho, peço que compreenda, ainda estou resolvendo uns problemas com minha mudança"
Desliguei o telefone e estendi a mão para que enchesse minha taça.
—Você venceu, Cristina.
Os olhos de Cristina brilhavam enquanto ela enchia a taça até beirar seu topo.
E assim fomos, de taça em taça.
A vista rodopiava um pouco, mas a sensação era maravilhosa.
—Precisamos de mais uma garrafa. Vou pegar.
Ela tentava seguir retilínea a cozinha.
Aproveitei de sua ausência, e um pouco mais sóbrio, liguei o karaokê.
Desabotoei a camisa e fui tirando lentamente com uma mão enquanto a outra segurava o microfone.
Cristina entrou na sala com mais uma garrafa. De costas, virei bruscamente em sua direção. Levantei a perna para o sofá, exibindo minha cueca de astronauta. Tirei a camisa sensualmente enquanto errava toda a letra de uma canção de Lionel Richie;
Cristina apenas observou a cena, sem demonstrar qualquer reação.
Talvez, bêbada demais, nem enxergasse muito bem a incrível performance a sua frente. Seus olhos apertaram novamente e minha valiosa taça de vidro soltou de sua mão.
***
—Desculpa, amor. Eu fiquei em estado de choque. Você precisa entender meu lado.
—Você me viu de cueca, como qualquer outra vez. Não precisava quebrar a minha taça.
Cristina ria involuntariamente. Por certo que ainda estava caçoando da cueca de astronauta. Fuzilei-lhe pelos olhos.
—Tá! Eu vou parar...
Ela me abraçou e deu leves beijos em meu rosto.
—Hoje a tarde, vou na lojinha aqui perto e te compro um conjunto de taças novas, tá certo? Vou aproveitar e comprar umas cuequinhas novas também...
Lá estava Cristina zombando novamente da minha cara.
Dessa vez não encasquetei. Desisti de lidar com o jeito risonho dela. E a noite passada também foi exagerada, bebemos muito e eu só queria saber de dormir, dormir e dormir.
Fiquei de bruços na cama ainda protegida pelo plástico.
Não demorou e um passarinho implicante pousou nas minhas costas. Também estava cansada.
Eu e Cristina ficamos nessa posição, sem risadas, problemas e nem discussões. Descansamos um no outro até que caímos no sono.
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SONHA COMIGO (ShortStory)
Aktuelle LiteraturCristina e Gustavo, namorados de infância, se reencontram depois de tantos anos. A convivência de um médico com uma atriz de teatro pode trazer conflitos bem maiores do que amar. Amar alguém é o suficiente? Autoria: José William Dutra Supervisão de...