Fica

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Não pensei duas vezes e corri para o quintal. Cristina ouviu meus passos apressados e se ergueu com um olhar feroz, me fazendo parar. Nunca a vi com aqueles olhos antes. Não era a mágoa daquela noite terrível do banheiro. Nem sua expressão confiante e determinada. Cristina me encarava com decepção, mágoa e o que se assemelhasse ao ódio. Naquele momento percebi que o amor que um dia Cristina teve por mim havia esgotado.

Ainda era tempo?

—Eu sinto muito, mas eu não podia deixar uma mãe morrer...

Ela levantou a mão, como se pedisse silêncio.

—Gustavo, me deixa sozinha. Sai de perto de mim...

Ajoelhei aos pés dela. Puxando a barra de sua saia. Implorando qualquer resquício de amor que tenha sobrado no coração dela. Humilhei em desespero para não perder a mulher que tinha escolhido pra passar a vida inteira junto.

Cristina me segurou pelos ombros, chorando com o rosto avermelhado, os olhos encharcados e a voz embargada.

—Me deixa sozinha, Gustavo! Só o que eu te peço!

Chorei mais ainda enquanto levantava. Ela continuou com Apolo, agachada no abraço dele, e eu voltei para dentro de casa, arrasado.

Peguei o carro e dei inúmeras voltas pela cidade, deixei Cristina em paz, na esperança de ainda poder ganhar seu perdão.

Meu anjo da guarda trabalhou dobrado àquela noite. Eu nem conseguia enxergar a rua com tantas lágrimas rolando dos olhos. Parei na beira-mar. Corri cambaleando na areia da praia. Não estava bêbado, nem drogado. Mas o que eu estava sentindo era pior do que qualquer droga.

Cai na areia e ali fiquei. O brilho das estrelas se embaçavam e ficavam nítidas todas as vezes que os olhos escorriam. As lembranças com Cristina rodeavam o rastro da Via láctea.

Via Láctea. Cristina adorava me contar da origem desse nome. Óbvio que era algo relacionado a Grécia Antiga. Um caminho de leite.

Um copo de leite derramado. Como o que derramei e não adiantaria mais chorar.

E assim adormeci, sem me importar com o frio.

***

Amanheceu e voltei para o carro, coberto de areia e de solidão.

Entrei em casa ainda atordoado. A porta estava encostada. Rodei por todos os lugares e não encontrei Cristina. Dei um pouco de ração para Apolo e fui tomar um banho.

Queria que a água que lavava meu corpo também limpasse os sentimentos ruins que borbulhavam dentro de mim.

Antes de sair do banheiro, me encarei ao espelho e minha expressão fantasmagórica se fazia presente. O rosto pálido, a pele marcada ao redor dos olhos.

Enxuguei o rosto, vesti qualquer roupa e fui para a sala.

Foram dois dias sozinho. Sem notícia alguma do paradeiro de Cristina. Faltei no trabalho, liguei para comunicar, aproveitei e perguntei a recepcionista se ela não tinha notícias de Cristina. Liguei para a companhia de teatro e até mesmo para a polícia. No fim da tarde me dei conta de que ela era a pessoa mais forte que eu conhecia. Não adiantaria nada procurá-la.

Quase não comi nada, parava nos cantos da casa e começava a chorar. Lamuriava meu sofrimento para Apolo. Ele deve ter se chateado com tantas lamentações.

Na madrugada, acordei várias vezes, pousava a mão no outro lado da cama e não sentia o corpo de Cristina.

Por onde ela andaria? Será que ainda era capaz de me entender?
No segundo dia, dormi com o peito vazio, sem lágrimas para rolarem. Mais calmo.

SONHA COMIGO (ShortStory)Onde histórias criam vida. Descubra agora