Apolo

16 1 0
                                    

Se você acha que letra de médico é ruim de entender, queria que visse a da Cristina. Minha letra ilegível era bem melhor que a dela.

Apertava bem os olhos para entender a lista de compras. Rodei todo o mercado, decifrando cada produto. Faltou apenas o óleo de coco pro cabelo dela.

Decidi passar em outro mercantil para comprar o que faltou ou ela iria me matar quando eu chegasse em casa.

Sai com as compras e caminhei na calçada pelo lado contrário ao que iria para a minha casa.

Sorte! Encontrei o óleo ungido para os cabelos da minha Afrodite.

Cruzei a porta de saída do estabelecimento, as pernas bateram em algo que me fez cair com todas as compras.

Voou mercadoria para todo lado. Levanto rapidamente, assustado e morrendo de vergonha.

O que me faria despencar tão fácil?

Uma senhora me ajuda com os produtos no chão.

—O cachorro é tão pequenininho que você nem viu...

Olhei para trás e um cachorrinho estava próximo a porta, também assustado.

Foi nele que eu tropecei. Estava um pouco machucado, mas não acredito que seja do tropeço.

Seu pelo branco estava sujo e marcado com alguns carrapatos.

Fiquei com dó e lhe joguei um pedacinho de biscoito que havia comprado no primeiro comércio.

Um pouco acoado, ele se aproximou com as bolotas dos olhos lacrimejando.

—Acho que ele gostou de você. Por que não o adota? Ele só precisa de um bom banho.

Sorri para a senhora e, com calma, tento pegar o cachorrinho nas mãos.

Dei até breve para a dona que me ajudou. Voltei com um bichinho para casa.

Várias compras. Uma dor nas costas. Um caminho que parece não ter fim.

***

Abri a porta de casa e não vi Cristina. Talvez esteja em outro cômodo. Coloquei o cachorro próximo ao sofá e fui guardar as compras.

—Fique quietinho enquanto o papai não volta, tá bom?

Cristina estava preparando o almoço.

—Você demorou, amor. Quase me deixou sem tempero.

Abracei-a de costas e lhe beijei a nuca.

—Lembra quando você disse que queria que nosso filho se chamasse Apolo?

—Sim, e você disse que era nome de cachorro.

Suspirei contendo cada palavra.

—Então... Eu queria dizer que você vai sim ser mãe do Apolo.

—Meu Deus, Gustavo? O que você tá querendo dizer? Não acredito! Você tá grávido, amor?! Nosso bebê tá aqui, nessa barriguinha de cerveja?!

Revirei meus olhos. Mas o que esperar dela.

—Cristina, para de caçoar de mim!

Tentei falar da novidade com calma para ela, mas Cristina não tolerava rodeios. Era tão boa atriz que realmente chorou de emoção com minha suposta gravidez.

—O Apolo quer conhecer a mãe dele. Ele está te esperando na sala.

—O Apolo?

Fomos para a sala para que Cristina o visse. E ela viu até demais.

Apolo estava em cima do nosso sofá novo, deixando-o imundo. E para completar, o tapete tinha um presente fisiológico canino.

Nem preciso falar do surto que Cristina teve.

Acredito que os vizinhos tenham se assustado com os gritos. Alguns talvez estivessem em suas janelas na ponta dos pés para espreitar a briga do casal.

Amarrei Apolo no quintal e lhe dei um bom banho com a mangueira. O Sofá e o tapete conheceram todos os produtos de limpeza criados pelo homem.

Fiquei de castigo, tive que fazer os afazeres domésticos o dia todo enquanto ela fazia hidratação no cabelo. Maldito óleo de coco. Mas olhava para Apolo, que agora teria um lar e alguém para amá-lo. E pensava, bendito óleo de coco.

No início da noite, fui preparar o jantar. Abri e fechei a geladeira umas cinco vezes. Decidi optar pelo mais fácil.

—Pão com mortadela?

—Pensei que vocês, comunistas, gostassem?

Cristina deu brecha pro riso com meu tipo de humor que ela já conhecia.

—Está copiando meu jeito de ser. A convivência transforma as pessoas, Gustavo... Estamos nos tornando iguais...

Não sei se isso era bom ou ruim.

O jantar não estava dos mais ruins

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

O jantar não estava dos mais ruins. Cristina até repetiu.

Fui levar algo para Apolo comer. Ele estava sentado, atento, vigiando algo que não existia.

—Dia difícil, não é campeão?

Passei a mão na sua cabeça e lhe entreguei a comida. Ele saboreava e abanava o rabo, e o louco conversando com ele.

—Daqui pra frente, você será bem tratado. Esqueça daquela ranzinza que gritou com você. Ela é assim. A Cristina parece ter raiva do mundo, mas só parece mesmo. Eu desconheço outra pessoa que seja tão especial. Nunca vi alguém tão mágico quanto ela.

Será que Apolo conseguia entender o que eu dizia? Tentei falar em 'cachorrês'. Depois de cinco latidos, percebi o quanto se comunicar assim com um animal era esquisito e doentio. Olhei para os lados, envergonhado e atento se alguém chegou a ver o mico.

Despedi do bichinho e voltei para casa. Fui até a sala e dei falta de Cristina. Pelo corredor, ouvi um som vindo do nosso quarto.

A porta estava entreaberta e pus meus olhos de relance.

Ela estava de joelhos, apoiada na cama, chorava. Não como alguém desesperado que perdera um parente ou amigo. Chorava devagar, como um excesso de tristeza que transbordou pelos olhos.

A respiração baixa não queria fazer barulho. O cabelo macio se espalhava desfazendo o rabo de cavalo mal feito.

Era a primeira vez que a via chorar. Chorar de verdade.

Era muito diferente de todas as vezes que ela atuou.

E sem saber como reagiria aquilo. Fiz o que de mais ruim eu poderia fazer com nosso amor.

Guardei pra mim.

Voltei ao quintal em silêncio. Passei boa parte da noite ali com Apolo.

Não disse nem pra ele. Nem em 'cachorrês'. Mas acho que Apolo sabia o que eu estava sentido.

A energia que saia de mim era muito triste e pesada.

Eu poderia entrar naquele quarto e desconversar, era só uma peça teatral que ela ensaiava.

Eu poderia entrar naquele quarto e me desculpar por todos os aborrecimentos que causei no dia.

Eu não entrei no quarto e eu nunca havia visto Cristina sem sua armadura.

SONHA COMIGO (ShortStory)Onde histórias criam vida. Descubra agora