Amores Líquidos

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Acordei no sofá um pouco dolorido. Movimentei o pescoço pros lados e a dor veio.

Caminhei até o banheiro, atordoado. A água no rosto me trouxe lembranças da noite passada. Mas ainda não lembrava o motivo de acordar no sofá.

Encarei-me no espelho da pia e meu reflexo deu espaço para sua imagem chorando em nosso quarto.

Devolvi a escova de dentes e enxuguei o rosto. Rapidamente, a procurei pelos cômodos. Ela estava na cozinha preparando o café.

—Bom dia, amor. Você dormiu no sofá, deve ter passado muito tempo com o Apolo ontem a noite, não é?

—Deve ser isso mesmo, tanto sono que mal aguentei caminhar até o quarto.

Sentamos para o café da manhã. Tentei capitar alguma mudança no comportamento de Cristina. Não sei se era atuação, mas ela parecia bem como todos os outros dias.

—Está tudo bem, amor?

—Sim... Por que?

Cristina me olhava ligeiramente assustada.

Não sabia como lhe perguntar. Era uma barreira que ainda não tínhamos atravessado.

—Ontem, a noite, você estava chorando no quarto, amor... E eu não ficaria em paz enquanto não conversasse comigo.

—Que susto, Gustavo. Era só isso? Eu tava ensaiando. Nada demais.

Cristina limpou a boca com um guardanapo e disse que estava satisfeita, levantou da cadeira e foi para a sala. Ouvi apenas o som da TV sendo ligada.

Aquilo não poderia ser só paranoia da minha cabeça. Conheço Cristina e sabia cada gesto do seu comportamento.

Sentei no sofá com ela. A TV trazia um reality de culinária. Ficamos em silêncio até que se anunciasse os comerciais.

Peguei o controle remoto e pus no mudo.

—O que houve?

—Eu te amo, eu gostaria que você conversasse e se abrisse comigo.

Ela desviou o olhar. Era sua armadura se impondo.

—Eu só tô cansada...

—Da gente?

—Não, Gustavo. O trabalho tá pesando um pouco e eu me exaustei.

Ela desligou a TV e foi até o quarto. Fiquei sem reação até que ela retornou com alguns envelopes.

—Serei a nova diretora, estou no controle do grande espetáculo deste semestre.

—Amor, isso é maravilhoso, por que não me disse antes?

—Minha mente tá sobrecarregada. Nem lembrei de comentar.

Cristina não costumava lidar com a direção. A ela cabia atuar, e fazia de forma magnífica. Imagino como seria difícil cuidar de um espetáculo. Cristina não era a pessoa mais indicada para ser prestativa e simpática quando o assunto era interação social com muitas pessoas.

Porque tudo deveria estar perfeito. Nenhum erro seria tolerável, e controlar isso com um marido implicando e trazendo problemas em casa era bem desagradável.

Puxei-a para deitarmos no sofá.

Ela se guardou no meu peito e acariciei seu cabelo com os dedos.

—Desculpa por ter te estressado ontem.

—Está tudo bem... Eu também sou ranzinza demais.

Eu deveria ter gravado ela dizendo aquelas palavras. Não era todo dia que Cristina se autocriticava ou pedia desculpas. Naquele momento percebi que ela havia baixado sua guarda.

—Sobre o que será o novo espetáculo?.

—A peça fala sobre os amores líquidos. E adivinha? Serei a dona de um prostíbulo.

—Será a cafetina mais irresistível de São Roque Gonzales.

Cristina sorriu brevemente.

Seu celular começa a tocar. Ela tira rapidamente do bolso, era sua mãe. Ela apenas rejeita.

—Por que não atendeu sua mãe?

—Deve ser pra me pedir algum trocado. É só isso que ela sabe fazer. E ela dizia que eu que passaria fome saindo cedo de casa.

Aperto meu abraço.

—Não seja tão dura.

—Digo o mesmo pra você. Qual a última vez que abraçou seu pai?

Cristina não cortava muito bem cebolas, mas era certeira em dar facadas.

Não tínhamos com quem contar, apenas um ao outro.

—Ele se afastou tanto depois que minha mãe morreu...

—E mesmo assim, você quis agradá-lo se tornando médico?

—Talvez...

—E valeu a pena?

Pensei muito antes de respondê-la.

—Fico feliz em salvar vidas, Cristina.

Ser médico era uma missão importantíssima. E ver o sorriso de quem eu ajudei era gratificante.

—Eu penso como seria se eu tivesse feito a vontade dos outros. Mas já pensou? Eu como uma advogada? Eu acho que não seria uma pessoa realizada comigo mesmo.

—Posso te confessar algo?

—Não gosto de rodeios, Gustavo.

—Eu sinto como se estivesse salvando minha mãe daquele câncer todas as vezes que atendo alguém...

—Não me faça chora, por favor. Eu detesto chorar de verdade.

Cristina pede para mudarmos de assunto. Tentei entender que era algo íntimo demais para conversarmos e não como parte do seu egoísmo. O silêncio reina até que ela usa seu leque de assuntos aleatórios.

—Tomamos muitos rumos e no fim, paramos aqui.

Foram muitos anos e os namorados da 5° série se reencontraram.

—Eu conheci muitas pessoas nesse tempo que não nos vimos. Mas ninguém em especial. Só relações passageiras. É bom tê-lo comigo.

Beijei sua bochecha esquerda.

Eu também estava feliz em tê-la comigo.

—Somos tão diferentes, e mesmo assim nos damos bem...

—Não acho que sejamos tão diferentes... Tirando as discussões por sistemas econômicos e as implicâncias do dia a dia.

Ela percebeu o quanto ressaltou nossas diferenças e calou-se.

A ferida estava ali. Não sei de onde surgiu, nem quem começou a cutucá-la. Mas tinha uma ferida ali.

No outro dia precisei demorar no trabalho. Aquela época do ano era famosa pelos acidentes no trânsito. O hospital estava lotado.

Cheguei exausto e Cristina se encontrava dormindo no sofá, esperando pela minha chegada.

O cabelo dela cobria parcialmente o rosto. A deusa grega estava indefesa em seu leito.

Fui na cozinha e o jantar dos dois estavam na mesa, cobertos por outro prato para que não esfriassem.

Estavam frios...

Qual a importância de sermos iguais ou diferentes, se no fim, necessitávamos um do outro?

SONHA COMIGO (ShortStory)Onde histórias criam vida. Descubra agora