Cristina abaixou a cabeça, parou de me olhar nos olhos, e do queixo só conseguia ver as lágrimas caindo. O som do choro não era mais ouvido.
Abracei-a bem forte, sem saber como reagir após aquele grito ensurdecedor.
O tempo passou, as garras fracas na minha barriga se desprenderam, e o choro acalmou. Peguei em uma de suas mãos e tentei ver dentro dos olhos dela. Cristina fugia o olhar a todo tempo, até que lhe segurei o rosto.
—Você não está sozinha... Confia em mim...
A voz que saía de mim não se parecia em nada com o ser desesperado que tinha entrado naquele banheiro.
Não chorei em nenhum momento, tentei ser o mais forte possível. Peguei a armadura de Cristina pra mim. E eu sei que ela conseguia ver todas as minhas lágrimas presas naquele traje robusto.
Guiei aquele voo penoso ao nosso quarto.
Ajudei-a a vestir uma de suas roupas, deitei-a como uma criança adoentada que precisava do carinho de um pai. O carinho que ambos nunca tivemos dos nossos.
Deitamos de conchinha, sem nada dito, sem nenhum sermão. Não perguntei o motivo da sua tentativa de automutilação. Não questionei nada que pudesse perturbá-la mais. Apenas deixei que ela descansasse. E em contrapartida, não consegui pregar o olho por nenhum segundo.
Fiquei de olhos abertos por toda a noite. Vigiando o sono leve do meu lado. E cada movimento que Cristina fazia enquanto dormia me deixava atento. Tudo por medo.
Medo de não tê-la mais, acordar e descobrir que Cristina havia aproveitado meu cochilo para concretizar sua ida na canoa de Caronte. Jamais deixaria que ela fizesse isso. Mesmo que eu tivesse que passar todas as noites da minha vida acordado.
Chega três da manhã e ela vira para o outro lado, erguendo minhas pálpebras já caídas. Suspiro fundo e sua aparência fantasmagórica volta no pensamento.
Por quê havia feito aquilo? O que a fizera chegar naquele ponto?
Não conseguia entender. Ao mesmo tempo que eu pensava ser capaz de imaginar os tantos motivos.
O sol raiou e eu estava exausto. Cristina despertou sem saber o que dizer sobre a noite anterior. Levantou um pouco tímida.
—Que horas são? Acho que já passou da hora do café... Gustavo, pode pegar meus textos? Vou só escovar os dentes.
Sigo-a até o banheiro.
—Você não vai trabalhar hoje, e eu também não.
Cristina deu um pequeno sorriso e disse que estava tudo bem. Pura atuação. Segurei-lhe os ombros novamente, e virei seu corpo para a direção do chuveiro. No canto da parede ainda estava a faca que eu havia jogado.
Foi golpe mais que suficiente para que eu quebrasse sua fortaleza novamente. Ela se calou e no reflexo do espelho vi uma lágrima teimosa escorrer de seu rosto.
—Desculpa...
Não deveria ter pedido desculpas.
—Só me diga o motivo. Por quê?
Notei a língua presa de Cristina. E ela escapou de mim, foi andando com a mão no rosto até a cozinha. O pão ainda estava na mesa, com a margarina destampada. Ela parecia desorientada e já ia fugindo da cozinha quando bloqueei a passagem e lhe fiz sentar na mesa.
Ficamos sentados frente a frente, com um pão mal cortado em nosso meio.
—Eu vou tentar sempre te entender, Cristina.
Ela percebia minhas tentativas, mas até eu consigo compreender seu silêncio. Sempre fugimos um do outro, em cada discussão e adversidade, nos escondíamos. E só nos encontrávamos quando sentíamos a necessidade do aconchego do outro.
Em que nível de necessidade estávamos naquele momento?
—Eu não sei o que te dizer... Só, estou cansada...
—Você está sempre cansada. Cansada da sua família, cansada de mim, cansada do trabalho... Cansada de tudo!
Meu tom voltava a ser agressivo e Cristina balançou a cabeça em negação.
—Não, Gustavo. Nós estamos cansados. Você também não se faz presente na minha vida!
Cristina voltava a chorar. E eu não rebati de volta porque ela estava certa. Eu que tanto desgostava do trabalho, me deixava ficar submerso. E naquela hora não via mais motivo pra falar sobre o nosso amor. Nem do que havia restado dele.
—Afinal... Por quê estamos juntos, Gustavo?
Ela se ergueu e foi para a sala. Choramos nas duas extremidades da casa.
E assim foi por umas duas horas.
Depois de tanto choro, começamos a sentir a falta um do outro, mas o orgulho de admitir parecia ser maior.
Joguei o bendito pão no lixo. Abri um pacote de biscoitos e fui até Cristina. Sentei ao seu lado, e sem nada a ser dito, estiquei o braço para que ela comece algum. Ela comeu um dos biscoitos depois de fazer eu esperar dez segundos com o pacote a lhe oferecer.
***
Passamos duas semanas em casa, convivendo diretamente um com o outro. Foi difícil nos desligarmos do trabalho, já que nos afastamos por conta disso.
Foi um tempo ajudando Cristina com os textos, e rejeitando inúmeras ligações dos nossos pais.
Cristina começou o acompanhamento psicológico e sua mudança era perceptível. Fiquei feliz em vê-la voltar para seu jeito original, forte e imponente.
Foi um período maravilhoso. Uma sintonia gostosa que mais parecia amizade.
Amizade...
Quem tivesse visto pela janela pensaria que não passávamos de bons amigos. E eu nem sei explicar o motivo do casal 2000 ter se deixado levar por um caminho de amizade. Sem a necessidade do calor de uma paixão. Estava sendo inevitável e acontecia sem que a gente percebesse. Pois no nosso singelo abraço, estávamos bem. E dentro de Cristina, não parecia ter restado nada de ruim.
—Você, é algo assim, é tudo pra mim...
Sorri sem continuar a música. Não continuei a letra. A letra da nossa última dança. Apenas sorri e ela sorriu de volta.
Tentei me repreender depois, mas o afastamento daquela tentativa de carinho foi involuntária.
Cristina continuava em silêncio. Era nosso último dia das férias antecipadas. Ela folheou os textos, deu uma organizada na ordem dos papéis e guardou em sua mochila. Tentava se ocupar.
A insegurança parecia ter voltado. Foram as horas que nãos nos víamos que nos tornaram independentes um do outro. Faltava um mês para o espetáculo. O trabalho voltaria mais intenso. Os últimos retoques e ensaios.
A paz de Cristina não deveria, porém começava a se abalar.
Dei um beijo de boa noite em sua testa. Eu também estava apreensivo com o rumo que poderíamos tomar com o início do trabalho. Olhei nos olhos dela, já deitados em nossa cama.
Os olhos de Cristina transpareciam as incertezas do que se tornou nossa relação. Dessa vez, ela estava consciente, fora de todos aqueles mundos. E conseguia ver nossas amarras desprendidas.
Sorri serenamente para que pudesse lhe acalmar e me acalmar também.
—É como eu sonhava, baby...
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SONHA COMIGO (ShortStory)
General FictionCristina e Gustavo, namorados de infância, se reencontram depois de tantos anos. A convivência de um médico com uma atriz de teatro pode trazer conflitos bem maiores do que amar. Amar alguém é o suficiente? Autoria: José William Dutra Supervisão de...