Os dias passavam com a mesma velocidade do mato crescendo. Toda a diversão de Comadre Fulozinha acontecia em seus sonhos, enquanto dormia um sono picotado sobre seu confortável colchão de pedras, logo após encerrar seu turno de vigia. Sonhava que estava longe dali.
As noites eram monótonas e intermináveis. Os dias eram idênticos às noites. A única exceção era a companhia lúcida de Nó Cego, Muçurana e Vingança.
Não era exagero dizer que Comadre Fulozinha sentia uma falta mortal do acampamento do bando completo. O trinta e um, a cachaça, a música. Até as celebrações religiosas de Muçurana eram toleráveis com a presença de outras almas vivas. Sentia saudades das companheiras, sobretudo de Miúda. De sentar com ela sobre um oleado estendido no chão e fazer mangonça de tudo e de todos. A saudade durava um minuto, pois no segundo seguinte ela era obrigada a lembrar de Nogueira. E se era de estar ali ou em qualquer outro lugar do mundo com Nogueira, Comadre Fulozinha preferia ficar ali, em sua cama – sob seu colchão, até.
Ela odiava Nogueira mais do que Nogueira odiava Nó Cego. Essa era a maior qualidade de Nó Cego. O maior defeito era ser mandão. O dia sempre estava dividido em tarefas. As coisas deviam estar sempre no mesmo lugar. Comadre Fulozinha não tinha paciência para aquilo. Vingança e Muçurana usariam uma cangalha, se Nó Cego pedisse. Ela não. Comigo a coisa é diferente. Naquela manhã mesmo, se não tivesse sido ágil o suficiente para escapulir, estaria tendo aulas de cartilha com Muçurana. Agora me diga, saber ler para quê? Nó Cego aprendera a ler, daí lhe arrancaram os olhos. De que serviu?
A segunda maior qualidade de Nó Cego era saber ganhar dinheiro. Isso sim era coisa de futuro. Com o tanto que vinha ganhado desde que se unira a Nó Cego, Comadre Fulozinha poderia muito bem contratar pessoas para ler e escrever para ela. Quem sabe num arranjo um marido letrado e já economizo uns tostões nessa brincadeira? Riu-se. Coisa de dois meses atrás teria externado esse pensamento e cairia na gargalhada junto de Miúda. Hoje estava ali, sozinha no meio do matagal sentada com Judiado e não era louca o suficiente para dirigir a palavra a um jumento.
— E o que é que tu tá olhando? — ralhou com o jumento.
Judiado bufou em resposta e seguiu comendo uma raminha de mato fresco. Mato era o que não faltava. O acampamento dos quatro estava montado nas terras do Coroné Caetano, coiteiro de Nogueira, que cedera o pouso ao grupo cansado de tanta correria. A ideia era ficar um tempo parado em algum coito conhecido de Nogueira e Chico Pedra para facilitar o reencontro deles e dela com o bando maior, as tentativas anteriores falharam.
Daquela vez, pelo menos, pareciam estar em um local realmente seguro. Uma vez por semana, mais ou menos, vinha um menino a mando do coroné para recolher dinheiro e a lista de compras do bando. Da última vez ele trouxera queijo de coalho, pó de café, rapadura e farinha de mandioca, fumo e munições – de espingarda e de rifle. De antemão Comadre Fulozinha pediu logo que trouxesse uma cachaça da próxima vez que viesse.
— Ainda temos — respondeu Nó Cego.
— Tem só mei litro.
— Da garrafa que você abriu ontem? Eu pensei que a gente tinha combinado de não se embriagar. Precisamos estar os quatro em alerta.
Um litro de cana não tira a minha 'alerteza', pensou Comadre Fulozinha. Deixou estar com Nó Cego e conversou a sós com o moleque, garantindo que ela receberia uma nova garrafa na próxima visita. Ela só não esperava que a próxima visita ocorresse tão logo. A primeira coisa que denunciou a presença de um estranho nas imediações do acampamento fora uma pequena linha de ansiedade e, antes sequer manipulá-la, ela sabia que se tratava do garoto.
— Chegou meus pedido! — celebrou. — Tchau, Judiado.
Mal tinha caminhado uma dúzia de passos e Comadre Fulozinha já estava enlinhada naquele fiapo de ansiedade. O que havia motivado essa nova visita tão próxima da anterior? Alguma novidade teve. Seriam notícias dos outros cangaceiros e cangaceiras? Terá algum deles aparecido por aqui? Não parecia ser o caso. Para quê mandar um menino em vez de virem em pessoa encontrar com eles e ela? A não ser que se tratasse de uma emboscada.