Quatro anos atrás

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O flashback a atingia como um soco, fazendo-a perder a noção de onde estava. Na verdade, se perdia em quando estava, e de repente tinha 14 anos de novo. A idade em que o conhecera.

Ela voltava do colégio a pé, por volta do meio dia. Tinha se demorado conversando com Lia, sua melhor amiga da época. Além disso, tinha gastado uns 10 minutos tentando, da maneira mais educada possível, dispensar um garoto da sua sala que resolveu abrir seus sentimentos em relação a ela. Acontecia com uma certa frequência, e o resultado era sempre o mesmo: ela sorrindo e dizendo que se sentia honrada mas já gostava de outro garoto. Na época, não gostava. Mas ela detestava dar um fora nas pessoas, principalmente com uma resposta sincera estilo "na verdade não me sinto atraída por você, e você só gosta de mim porque me acha bonita". A única vez que tentou isso, com palavras mais sutis, obviamente, havia sido desastroso. Então, por mais que não gostasse de mentir, a ideia de que ela já gostava de alguém sempre era mais aceitável para um garoto do que a de que simplesmente não gostava dele, ela podia sentir. E com podia sentir, ela estava sendo literal. Gabi sempre teve uma certa sensibilidade acima da média. Ela conseguia sentir as emoções das pessoas ao seu redor quando essas estavam intensificadas. Duas semanas atrás, Lia tivera um ataque de choro porque seu cachorro morreu. Gabi quase nunca via o cachorro da amiga mas sentiu a dor da perda como se fosse seu. No momento em que deu um abraço na garota, sentiu todas as emoções da amiga sendo absorvidas, como se ela fosse uma esponja de sentimentos. Começou a chorar junto tão intensamente que as duas acabaram na pedagogia falando com a psicóloga da escola. Certa vez, estava no ônibus e um homem de meia idade sentara ao seu lado. Logo, ela começou a sentir uma euforia absurda. Não sabia o porquê, mas se sentia vitoriosa e com uma grande vontade de comemorar. Quando puxou assunto com ele, descobriu que o indivíduo tinha recebido naquela tarde a promoção com que sonhara desde seu primeiro dia na empresa, 20 anos atrás. O sentimento era tão pulsante que ela mal conseguira dormir à noite pensando na promoção do homem.

Agora, se sentia meio mal. O garoto educadamente aceitou sua recusa, mas estava muito decepcionado. Ela conseguira sentir suas esperanças se esvaindo, e uma conformidade triste com seu estado se assentando em seu peito. Algo como "claro que eu não sou do tipo que uma garota assim gosta". Ela não queria que ele se sentisse assim, mas aquela história de "não é você, sou eu" só o deixaria pior. Então deixou o lugar com misto dos sentimentos de derrota que sugou do garoto e de culpa que surgiam de si mesma, Que droga. Um dos preços a se pagar por ter tanta beleza e esse dom esquisito ao mesmo tempo.

Ela estava meio perdida nesses pensamentos enquanto adentrava a rua de sua casa, que ficava bem perto do colégio. Andando rápido, chegava lá em 8 minutos. Era uma boa área, pois não pegava o movimento da avenida principal onde ficava o colégio e nem da rua longa que a separava dessa avenida. Era em um terceiro ponto que adentrava uma área sem comércios ou pontos de ônibus, então os estudantes não iam muito para lá, onde só haviam casas de classe média alta. Talvez por isso tenha sido tão surpreendente quando foi invadida pelos sentimentos do garoto encolhido na calçada alguns metros à sua frente, atrás de uma árvore grande que dava para o terreno da casa dos donos de uma rede de restaurantes locais . O que ele estava fazendo ali?

Descansando, ela concluiu. Porque ele estava exausto. Geralmente, era invadida por sentimentos bons ou ruins (como alegria, tristeza ou raiva), mas nesse caso o cansaço a acertava em cheio, misturado com um nervosismo inquieto, como se ele estivesse esperando um ataque ou algo assim. Ela parou de andar antes que se aproximasse muito. Essas situações eram meio perigosas, intensidade demais. Se ela conseguia sentir o garoto daquela distância, seria consumida caso se aproximasse demais. Precisava desligar. O problema é que não era tão fácil assim.

Com muito treino, ela tinha desenvolvido um mecanismo mental para de distanciar das emoções das outras pessoas, como se acionasse um escudo de proteção. Para isso, precisava controlar sua respiração e fazer uma espécie de meditação interna guiada, sentindo todo o seu corpo e se concentrando apenas nas suas próprias emoções, visualizando uma tela branca em seu pensamento. Era uma espécie e mindfulness. O problema era que ela não era a garota mais concentrada do mundo. Era muito fácil se deixar levar pelos sentimentos alheios. Mas nesse caso achava melhor evitar, para evitar incidentes. Uma vez, quando tinha 10 anos, ela estava passeando no centro com sua mãe quando um adolescente drogado as parou para pedir dinheiro. Ele estava totalmente alucinado, em um caos interno tão grande que a garota quase foi derrubada no chão. Ela não conseguiu evitar sentir tudo aquilo, como se estivesse com a cabeça explodindo com as cores vivas e ensurdecedoras e todo aquele movimento, a euforia e o desespero se misturando de uma forma embaralhada que a deixava enjoada e tonta. Sua mãe logo percebeu que ela estava surtando e a pegou no colo, afastando-a rapidamente do garoto. Ela acabou vomitando e passou uns 3 dias se sentindo aérea, incapaz de esquecer aquelas sensações malucas. Não é à toa que ela nunca ousara sequer se aproximar de droga alguma. Era raro que incidentes assim acontecessem, mas ela não queria arriscar ser sugada em um vórtice de exaustão com o aparente menino de rua. Então se concentrou o máximo possível para limpar a mente e ser capaz de se aproximar dele sem desabar. No entanto, sua concentração foi quebrada com o som do carro do dono da casa se aproximando.

Talismã do Fogo (Leo Valdez Fanfic)Onde histórias criam vida. Descubra agora