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Passaram-se duas semanas com simples idas ao café e passeios pela cidade apenas como amigos. Custava-me imenso ver que estas semanas nos tinham afastado muito, apesar de termos estado a maior parte dos dias juntos. Mas já nada era igual. Desde o dia da discussão que ele já não me olhava daquela forma que faz com que todas as minhas entranhas se contraiam dentro de todo o meu ser, já não me tocava da forma que fazia com que electricidade me percorresse de alto a baixo... A única coisa que se mantinha era o arrepio que a presença dele me causava. Ainda me sentia da mesma forma, só que agora estava um pouco desiludida. Sim, eu sei que fui eu que causei toda esta situação, só que agora já não tenho certezas de nada.

Agora, ele deixava-me confusa, como se num momento quisesse alguma coisa de mim e no segundo a seguir nem me quisesse ver à frente. Tanto tínhamos momentos mais próximos, mais expectantes como depois parecia que nascia uma espécie de barreira entre nós. São coisas que não percebo.

Os meus pais tinham chegado logo na segunda-feira a seguir á discussão. Pelo que sei, a viagem correu bem e o me pai voltou bastante relaxado a casa (consigo imaginar porquê), mas agora já andava outra vez numa pilha de nervos, uma vez que tinha começado a trabalhar logo no dia a seguir ao regresso. E hoje estava especialmente nervoso, chegava a ser irritante.

Saí de casa, como todos os dias, para ir até á esplanada do costume com a Cat e os rapazes e como nos perdemos na conversa acabei por chegar a casa mais tarde que o costume. 18:12h.

- Abigail! – ele chamou-me da sala com aquela voz gutural e intimidante. Vinha merda. Estaquei sobre mim mesma e dirigi-me á sala um pouco a medo. A minha mãe ainda não tinha chegado. – Isto são horas de chegar?! Mais um bocadinho e chegas mais tarde que a tua mãe! – as paredes estremeciam em reflexo à sua voz. Eu acompanhava-as.

- Até parece que cheguei ás 8h da noite! – tinha mesmo de responder.

- Não me respondes assim. Sou teu pai e comigo baixas o tom, percebes? – ele subiu a voz ainda mais.

- E eu sou tua filha, também não mereço respeito?! – outra vez o nó na garganta. Era sempre a mesma coisa.

- Ah, queres respeito? Ganha-o! Pensas que és quem? Tu irritas-me! Não fazes nada, nem queres fazer e queres respeito? AHAH!

Olha que moral, realmente! A gargalhada dele enviou-me um calafrio pela espinha.

- Se eu fosse a dizer tudo o que quero, aí é que nem queria ver o que é que me fazias! Nem dignidade me restava! – estava a uma gota de explodir.

- O que é que queres dizer com isso?!

Estava a preparar-me para falar quando a nossa discussão foi interrompida. Mãe.

- O que é que se passa aqui? – nem tinha dado pela entrada dela.

Viro-me para ela já com as lágrimas a queimarem-me a garganta e não me contenho mais.

- Pergunta a quem começou com isto! Não respeita ninguém e quer ser respeitado! Cansei... Merda... – a minha voz falhou nas últimas palavras e a lágrimas começaram a correr-me pela face a uma velocidade incontrolável.

Corri para o quarto e bati a porta com força. Encostei-me a ela de modo a que ninguém entrasse e depois deixei-me escorregar e caí no chão a chorar.

Estava tão farta de tudo. Farta de todas as discussões e de todas as cenas que o meu pai fazia para me deitar a baixo. Foi só mais uma das discussões. Só que desta vez cansei. Cansei de vez. Não aguentei mais e explodi. Existem coisas que ultrapassam todos os limites e esta era uma delas. Não tinha respeito nenhum por ninguém, sempre a deitar abaixo, sempre a dizer que ninguém faz nada, quando na verdade quem fazia tudo naquela casa era eu e a minha mãe. O meu problema é nunca ter coragem para lhe atirar com as coisas á cara.

Estava a tentar parar de chorar compulsivamente quando sinto o telemóvel vibrar dentro do bolso traseiro das calças.

Era o Gabriel. Respirei fundo várias vezes antes de atender para parecer o mais natural possível.

- Sim? – a minha voz estava fraca.

Um silêncio invadiu a linha por momentos.

"Abi, estás bem?" – obviamente sou demasiado transparente.

- Sim. – esfreguei as têmporas.

"Abi, estás a chorar?"

Ok, eu desisto, para que é que ainda me dou ao trabalho?

- Não... que querias? – soluço.

"Abigail! Não me mintas!" – a sua voz era exigente.

- Merda, Gabriel, ainda não percebeste que estou a chorar?! – desfiz-me outra vez e comecei a soluçar fazendo com que mais lágrimas me queimassem a pele.

"Tem calma, eu ia perguntar-te se não querias sair, mas já percebi que vou ter de ir ter contigo..."

- Gabi, não...

"Nem não, nem meio não" – interrompeu-me – "eu vou se eu quiser, às 9h estou em tua casa, está pronta."

Nem tive oportunidade para responder, ele desligou. Achei que tinha sido de propósito.

Não sei se estava sequer com disposição para sair depois de tudo o que aconteceu, mas também não queria ficar em casa debaixo do ambiente pesado que iria ficar.

Sim, porque o meu pai nunca pedia desculpa por nada... acho que é um dos piores defeitos de uma pessoa – o orgulho. Saber que uma pessoa tem razão mas o orgulho ser tanto ao ponto de não conseguir dizer a palavra "desculpa". Mas enfim, o que é que se pode fazer? Cada um é como é e ponto.

***

No fim do jantar fui direta ao quarto e preparei-me para sair. Vesti umas calças e uma camisola branca de manga de ¾ por causa do fresco da noite.

E portanto, eram umas 9:10h quando recebi uma mensagem de Gabriel:
"Estou a chegar. Vai descendo e diz á tua mãe que vais sair com a Cat e que vais chegar tarde, depois explico".

Fiz exatamente o que ele me pediu e mal acabei de descer ele chegou incrivelmente sexy na sua moto preta com uma t-shirt preta e aquelas calças de ganga coçadas que havia usado no dia em que nos conhecemos. Perguntei-me se ele não o teria feito de propósito.

Ele nem me deixou chegar perto. Saiu da moto com a mesma elegância de sempre, fixou-me os olhos, dirigiu-se a mim e subitamente senti-me sufocar nos seus braços fortes e musculados. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me protegida, como se nada nem ninguém me pudesse magoar ou fazer mal. Sentia uma enorme vontade de chorar, mas incrivelmente consegui conter-me. Podia ficar ali para sempre, a sentir o coração dele contra o meu. Sentir o calor dele afagar o meu frio interior e exterior. Tremia incessantemente, não sabendo se era do frio ou da frustração em que me encontrava.

Ele apercebeu-se disso e apertou-me ainda mais, como se de facto ele soubesse o que estava a sentir. Talvez soubesse.

Permanecíamos os dois em silêncio, aproveitando o momento. Consegui sentir a forma diferente como ele me abraçou, senti a forma diferente com que ele me voltou a olhar. De alguma forma senti-o voltar.

Quando nos afastámos ele pegou-me na face e colocou-a entre as suas mãos quentes.

-Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Anui. Os seus olhos contemplavam-me, coisa que já não acontecia à muito. Pelo menos, não assim. As lágrimas começaram a vir á tona.

Merda! Não podes chorar!

Tive de virar a cara. Afastei-me, tendo consciência de que tinha acabado de estragar o momento.

E se pudesses voar?Onde histórias criam vida. Descubra agora