Capítulo 21

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Helena

O copo de água na minha mão não parava de tremer enquanto eu o levava à boca.

— Você está mais calma?

— Não muito. Mas estou melhor. — Fui sincera com Flávia.

— Eu sinto muito pelo que aconteceu.

Coloquei o copo sobre a mesa, estendi as mãos e segurei as de Flávia. Estávamos sentadas próximas, no sofá da sala, com a luz acesa, eu tinha total visão do seu rosto, do quanto ela mesma estava assustada.

— Não aconteceu nada, graças a você. Muito obrigada pelo que você fez.

— Eu não fiz nada de mais. Você precisava de ajuda. Eu fui até imprudente, ele poderia ter me dominado e ferido a nós duas.

Vi quando suas mãos tremeram contra a minha e um arrepio percorreu o seu corpo.

— Você estava gigante lá fora, Flávia, uma mulher forte, e conseguiu me proteger e a si mesma.

Ela respirou parecendo frustrada.

— Tome cuidado com Everton, ele é perigoso, e nem sempre conseguimos nos proteger. Eu aprendi isso na marra.

Ela falou em uma voz tão fina, que eu parei alguns segundos pensando ter ouvido correto. Flávia tinha a cabeça baixa, como se tivesse vergonha do que me contava. Havia história por trás do que ela estava falando.

— Ele já tentou algo contra você?

Minha pergunta também saiu em uma voz fina, quase inaudível. Eu estava com medo da resposta. Ainda mais quando uma lágrima brotou dos olhos de Flávia, seguida de outras.

Dei um tempo para que ela se acalmasse, enquanto mantinha minha mão entre as suas, fazendo leves movimentos para que entendesse que não estava sozinha. Meu nervosismo foi passando, dando lugar a uma raiva, nojo.

— Quando aconteceu, eu não tinha total noção do que era assédio, estupro, e nem nada disso. Sabe, mulher do interior? — Ela começou a falar, mas logo fez uma pausa respirando fundo, e enxugando os olhos. — Ele me seduziu, Helena, me iludiu, no final, me pegou à força.

Eu estava em choque. Ouvir relatos como aquele era doloroso, ainda mais para uma mulher, que sabia do terror que passávamos. O medo que sentíamos ao ver algo assim, ao presenciar, sentir. Doía em cada parte do meu corpo ver a doce e meiga Flávia relatando aquilo.

— Eu sinto muito, Flávia. Eu queria pode ter te ajudado, assim como você fez comigo. Faz muito tempo isso?

— Quase cinco anos. — Ela abriu um sorriso para mim, imaginando que eu compreenderia alguma coisa.

E sim, a pontada no meu coração veio com a compreensão do que ela estava dizendo.

— José... É filho dele?

Apenas um aceno de cabeça foi a resposta. Puxei-a para mim, abraçando aquele corpo que me protegera minutos atrás, pensando que quando foi sua vez, não havia ninguém ao seu lado.

— Eu sinto muito. Meu Deus, eu não sei nem o que dizer.

— Não sinta. Não por isso. José foi a melhor coisa que poderia ter surgido na minha vida — ela falou depois de alguns minutos em silêncio. — Ele é precioso para mim, independente de como foi gerado.

— Mas você não denunciou? Ele não foi preso?... — Era uma pergunta quase inútil, sabendo como as coisas aconteciam para esse assunto. Mas era inconcebível imaginar uma coisa tão horrível assim, e pensar que um monstro como aquele saiu impune.

— Na época eu tentei. Mas ele disse que eu havia consentido. Que eu gostei. Ele fez todo um jogo e saiu como inocente, e eu a que deu em cima dele. Quando eu descobri a gravidez, ele disse que não era o pai, que provavelmente eu tinha "dado" para muitos, e queria lucrar à custa dele.

Limpei as lágrimas que escorriam por meu rosto. Era doloroso pensar em tudo o que aquela mulher havia passado. Eu não sabia o que dizer. Na verdade, não tinha o que ser dito. Então eu a puxei novamente para meus braços, apertando-a contra meu corpo, tentando reconfortar os sentimentos daquela mulher que a cada dia se mostrava mais forte aos meus olhos.

— Nikolas na época chegou a confrontá-lo, mas isso só serviu para deixar Everton com ainda mais raiva. Quando ele descobriu que não havia herdado nada do seu tio, foi o estopim para ele, que ficou furioso e achou que acusando Nikolas, poderia estar se vingando.

Fiz que sim com a cabeça, compreendendo um pouco mais da história daquelas pessoas que eu passei a admirar.

— Eu imagino que não deve ter sido fácil para você.

— Não foi, em momento nenhum. Mas quando eu olhei para o rostinho do meu filho, soube na mesma hora que ele deixaria as coisas mais leves . É a minha motivação hoje em dia.

Fiz que sim com a cabeça e ficamos alguns segundos em silêncio, parecendo absorver uma a dor da outra. Eu sentia muito por ela, mas compreendia que era uma mulher forte, que não queria olhares de pena para si.

— Mamãe...

Uma vozinha sonolenta vinda do alto da escada chamou nossa atenção. Quando levantamos os olhos, Zé estava parado próximo à grade de proteção que havia ali, coçando os olhinhos. Desviei os olhos para Flávia e a vi enxugando o rosto rapidamente, para que a criança não notasse, então me apressei em sua direção, subindo as escadas e dando tempo para que Flávia se recuperasse.

— Ei, garoto, o que está fazendo acordado?

— Vocês conversando, me acordaram — ele fez uma vozinha manhosa enquanto o pegava no colo e descia em direção à sala.

— Desculpa por isso.

Assim que o coloquei sobre o sofá, ele se aninhou nos braços de Flávia, no lugar mais seguro que poderia existir para um filho, e ficou ali deitado. Ela, por sua vez, passou as mãos carinhosamente sobre sua cabeça e depositou um beijo no alto, em cima dos cabelos.

— Eu te amo, meu pequeno.

Fiquei observando a cena, admirando o quanto aquela mulher era forte, guerreira.

Eu teria muito que aprender com ela ainda.

Aproximei-me dos dois, sentei-me no sofá e acariciei as costas de Zé lentamente. Eu cada dia admirava mais Flávia, e me apegava aos dois. Eles eram minha família agora.

A Herdeira e a FeraOnde histórias criam vida. Descubra agora