Prólogo

125 22 50
                                    

30 de janeiro de 2022, domingo, São Paulo

- Yelena Bonaporti! O jato decola em 15 minutos.

Essa era minha mãe, me chamando da pista de pouso no teto da casa pelo que parecia ser a décima vez. Olhei uma última vez para meu quarto, minha linda cama, meu querido habitat natural, antes de fechar o zíper da última mala e aceitar a cruel realidade: eu estava prestes a voltar para o Internato Perseverança.

E seria obrigada a ver pessoalmente todos aqueles de que só ouvi a voz nos últimos dois anos, e que certamente estiveram felizes em ouvir só a minha voz também.

- Nós vamos sair sem você! – continuou a minha mãe, e eu bufei.

Por que eles não iam, afinal?

Estava prestes a responder isso, mas me contive, por 1) saber que inflamar o humor de Lúcia Bonaporti, a rainha de São Paulo, não era algo recomendável e 2) o único jeito de eu competir na liga interescolar nacional de futebol era através da escola, então eu realmente não tinha muita opção de ficar. A única coisa que eu realmente queria naquele ano, após dois treinando em casa e chutando para o vento, era essa oportunidade, e nenhum colega de sala – por mais irritante que fosse – poderia tirar isso de mim.

Tudo bem, essa minha motivação toda escorreria pelo ralo no momento em que Júlio abrisse a boca, mas estava tentando - para variar - me manter positiva.

- Yelena...

- Por Deus! Eu. Já. Estou. Subindo.

Cheguei no topo do quarto andar, quase me arrastando até a aeronave. A vista era linda dali: vivíamos em um condomínio apenas um pouco afastado do centro, de modo que a linha do amontoado de prédios com as janelas iluminadas àquela hora da noite era nitidamente visível.

Eu gostava de prédios, e de suas luzes. Talvez devesse pensar em fazer engenharia.

- Entre logo, vai desarrumar meu cabelo. – reclamou Lúcia.

Revirei os olhos, porque era mentira. Eu tinha herdado os fios tão lisos quanto oleosos dela; se nem Babyliss seguido de spray fixador era capaz de fazê-los se mexer, não seria um ventinho que conseguiria tal proeza.

Minha mãe então, com seus implacáveis saltos altos de dez centímetros que compensavam a baixa estatura, me ajudou a subir na aeronave (ignorando a oferta do segurança ao lado, como se quisesse provar que merecia ser casada com o rei), permitindo que eu me acomodasse em uma das seis poltronas marrons. Ligeiramente a meu lado já se encontrava Theo Bonaporti, meu irmão mais velho, com o clássico terno azul marinho sob medida e as costas formando um ângulo perfeito de 90 graus.

Dobrei a perna, apoiando o calcanhar na ponta da poltrona. Minha mãe me lançou aquele olhar, e eu dei ligeiramente de ombros, do tipo "não é minha culpa que vocês esqueceram de contratar aulas de postura para a filha mais nova".

Voltei a observar meu irmão. Theo não era velho o suficiente para ser o herdeiro do trono, mas, em momentos como esse, quando digitava furiosamente algum e-mail importante com o selo do estado fora do horário comercial de qualquer ser humano decente, eu achava que deveria. O que soava vergonhosamente como uma traição a Bernardo, o mais velho de nós três e o verdadeiro herdeiro do trono.

- Eu avisei que devíamos ter ido na quinta. – continuou minha mãe, quando o jato já estava no ar, incapaz de manter o silêncio, traço esse que eu certamente não havia herdado - Vocês teriam tempo de organizar os pertences no dormitório, conversar com os alunos novos, colocar o papo em dia com os antigos...

Theo e eu murmuramos algo como "uhum", simultaneamente distraídos e desinteressados. Ambos tínhamos ótimos motivos para postergar ao máximo a ida para o internato; os de Theo infinitamente mais nobres que os meus.

Acompanhei o percurso na televisão à minha diagonal, conferindo que a viagem definitivamente não seria longa: três horas, até mesmo duas e meia, se o céu permanecesse limpo. Já havia estado no Rio Grande do Sul umas duas vezes, todas visitas rápidas e com fins diplomáticos: tinha a vaga lembrança de churrascos e um clima frio, nada muito específico. Comecei a me perguntar como seria o Campus do internato, se o estádio de grama cara e sintética seria maior do que aquele do Mato Grosso, se meu dormitório estaria em um prédio ou em um chalé. E o uniforme? Apesar de a insígnia ser a mesma, eles mudavam a cor todo ano e, assim como todo o resto, era uma grande surpresa.

Eu quase não podia acreditar que as aulas realmente estavam voltando a ser presenciais. Em 2020, quando a pandemia eclodiu e o Internato – naquele ano sediado pelo Espírito Santo – fechou suas portas, se adaptar ao sistema online foi estranho. E se concentrar foi difícil também. Mas eu descobri que podia me acostumar: não achava tão ruim assim não ter que suportar os comentários engraçadinhos dos meninos, os olhares atravessados das meninas, os pedidos para selfie no Instagram de pessoas que só me conheciam pelo sobrenome. A parte do esporte foi péssima – novamente, competindo contra o ar – mas, tirando isso, foi ok. Foi tranquilo de um jeito que não era, tipo, desde que eu entrei na escola. Mas agora era oficial, tudo estava voltando, e eu não sabia se estava pronta, nem se ainda tinha as respostas para perguntas desconfortáveis que costumavam ficar na ponta da língua.

Meu estômago começou a se embrulhar em uma linha agridoce entre a ansiedade e o nervosismo quando meu celular vibrou, o nome de Miguel aparecendo na tela. Um sorriso instantaneamente cresceu em meu rosto ao ver a foto de perfil do garoto, que escancarava seu caso seríssimo de obsessão em todos os longas da Marvel.

 Um sorriso instantaneamente cresceu em meu rosto ao ver a foto de perfil do garoto, que escancarava seu caso seríssimo de obsessão em todos os longas da Marvel

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Desliguei o aplicativo, encarando distraidamente o reality show culinário que se desenrolava na televisão

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Desliguei o aplicativo, encarando distraidamente o reality show culinário que se desenrolava na televisão. Theo não se importou com o barulho das panelas e copos batendo, permanecendo concentradíssimo no que quer que estivesse fazendo – era política, tudo o que minha família fazia e conversava tinha a ver com política – nem minha mãe, que passou cada minuto de voo vasculhando sites de compras online. Provavelmente procurando por mais alguma bugiganga absolutamente desnecessária para ocupar a nossa mansão vazia pelos próximos seis meses.

Tudo bem, isso foi um comentário um pouco maldoso. Miguel me repreenderia.

Ah, Miguel novamente. Não nos víamos de fato desde o ano novo, quando trocamos cerca de cinco palavras apressadas antes do avião da família dele decolar, e senti uma pontada no estômago ao perceber que estaríamos no mesmo pátio dali a apenas algumas horas. Deveria ser bom, mas e se ele me perguntasse sobre o que aconteceu aquele dia no Natal, quando saí no meio da ceia de jantar e me recusei a receber qualquer presente?

Coloquei a cabeça nas mãos. Era melhor começar a formular uma mentira, e uma convincente.

Mas, pensando melhor, era mais provável que Miguel simplesmente ignorasse o assunto. Sim, não seria tão difícil pular para a parte em que reclamávamos da nova professora de matemática, seria?

Ele era um bom amigo, ao menos o melhor que eu tinha. As coisas costumavam ir bem entre nós dois, sobretudo quando eu fingia que não seríamos obrigados a nos casar dali a três ou quatro anos.

Princesinhas  | ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora