Capítulo 35

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- Porque ele veio aqui para se livrar de mim? – Foi a pergunta que Charlotte fez a si mesma ao andar com extrema dificuldade para ir ao seu trabalho. O interrogatório estava marcado para ser um pouco antes do almoço, então ela ainda teria que trabalhar como empregada por algumas horas.

O normal seria Charlotte ter corrido o mais rápido possível atrás de algum mago ou curandeiro ou médico para tentar se curar daquela maldição que parecia estar consumindo a carne da sua barriga.

Contudo, as tendências levemente suicidas de Charlotte a impediram de fazer isso.

Ela pensou que racionalmente primeiro deveria procurar entender o motivo de o pai morto de Richard ter aparecido em seu quarto do nada para tentar matá-la com uma maldição esquisita que conseguia vencer (mesmo que bem devagar) a imensa regeneração de seu corpo.

E infelizmente aquele era um dos dias que sua regeneração estava mais fraca por culpa dos efeitos colaterais da coleira de inibição. Por isso a tal mancha negra estava se alastrando mais rápido do que deveria. Ao menos a dor não era insuportável e Charlotte conseguia fingir mais ou menos bem que não sentia nada, embora Safiye não tenha ficado muito convencida.

- Tem certeza de que está tudo bem com você hoje Charlotte? – Safiye indagou durante a pausa para um lanchinho escondido que as duas normalmente faziam no meio das roseiras do jardim – Você está se mexendo estranhamente, como se algo estivesse te incomodando...

- Eu estou bem, Safiye – Charlotte mentiu com um sorriso tranquilizante, mordendo uma maçã com fingida descontração – Só estou com um pouco de dor nas costas pelas tapeçarias que lavamos ontem, só...

- Hum... – Safiye não parecia acreditar muito, porém não insistiu no assunto e, em vez disso, começou a falar sobre como Richard havia ficado lindíssimo com a capa dourada que usara no dia anterior durante o interrogatório dos últimos soldados/testemunhas do reino do ar.

Charlotte suspirou um pouco ao pensar sobre seu próprio interrogatório vindouro. Ela não sabia se era uma boa ideia contar a Richard que o pai dele, o antigo rei Albert, estava vivíssimo, havia a visitado na noite anterior, tentado matá-la com uma maldição (que continuava se alastrando por sua barriga) e dando a entender que era o culpado pelas quatro cidades dizimadas.

Era tão absurdo que provavelmente ninguém acreditaria nela, a não ser que ela mostrasse a tal maldição em sua barriga, mas ela não achava que isso seria muito útil em tal situação.

Charlotte era esperta e conhecia alguma coisa sobre maldições. Aquela que afligia sua barriga com toda a certeza precisava do poder de um mago poderosíssimo para ser concretizada, e como ela sabia que Albert não era um mago, provavelmente ele usou magia roubada para efetivar o feitiço. Só que a cor verde do feitiço mais uma vez indicava um autor diferente do verdadeiro. Sendo assim, as pessoas que analisassem aquele ferimento poderiam se ater apenas a magia esverdeada e ignorar as palavras de Charlotte, o que só pioraria as coisas.

Mesmo assim, Charlotte sabia que precisava buscar ajuda o mais rápido possível para se livrar daquela maldição mortal. E aquela ex-rainha era esperta o suficiente para perceber que só havia um único mago capaz de salvá-la daquela situação complicada: seu ex-médico pessoal Stevan.

Stevan atualmente era o único mago naquele castelo com conhecimento e experiência para conseguir curar um feitiço tão poderoso como esse. O problema era saber se Stevan estaria disposto a ajudá-la com isso ou no final acabaria a observando definhar até morrer com um sorriso divertido no rosto, como quase fez várias vezes durante a infância e adolescência de Charlotte.

Mas deixando a questão de sua morte iminente de lado, o que mais estava intrigando Charlotte eram as palavras de Albert dando a entender que estava fazendo tudo aquilo por um "amado" que era vidrado nela.

Charlotte tinha um palpite sobre quem seria este, mas tal ideia era tão absurda que ela logo a descartou e voltou à estaca zero em seus devaneios.

Logo a hora de seu interrogatório chegou e ao menos sua regeneração já havia voltado a ficar mais forte, dando a Charlotte uma pequena janela de alívio do incômodo persistente que aquela mancha escura causava.

Não era como se a regeneração estivesse fazendo a maldição diminuir. Apenas estancou seu avanço, deixando Charlotte certa de que a maldição voltaria a avançar por seu corpo caso sua regeneração tivesse outro deslize.

Ela entrou na sala de interrogatório com as mãos trêmulas, dando de cara com vários reis, generais e soldados dos quatro reinos do mundo a encarando como um réu em um julgamento.

Richard, Henrique, Alexander, James e Philip estavam sentados atrás de uma mesa larga, bem no meio do recinto, abarrotada de papéis que Charlotte imaginava ser provas das circunstâncias ou mapas das cidades atacadas. Stevan estava de pé, encostado na parede próxima a Philip com os braços cruzados e olhos frios atentos enquanto Nathaniel se colocou em posição de guarda à frente dos soldados.

Ela andou até ficar de frente para a mesa dos reis e procurou um ponto confortável entre seus pés para se distrair em vez de olhar para aqueles homens. A roupa de empregada que ainda trajava não ajudava muito a manter uma postura séria com alguma dignidade.

Ela nem percebeu o rosto ansioso de Richard ou a expressão vingativa de Henrique.

Richard havia passado a noite toda pensando na conversa que ela teve com Henrique e tentando bolar uma maneira de a livrar desse interrogatório coercitivo, tudo em vão...

- Hoje iremos ouvir a ex-rainha do Gelo Charlotte Verkoudheid – James anunciou com altivez, servindo de mediador para aquela sessão de interrogatório – Primeiramente iremos escutar o que Charlotte tem a dizer por livre e espontânea vontade. Caso a primeira versão dela não seja aceita por nós como verídica, iremos usar outros meios para arrancar a verdade da boca dessa senhorita... GUARDAS!

James deu um comando e além de aparecer um armário com rodinhas cheio de instrumentos de tortura (que era o que Charlotte esperava), os guardas também vieram praticamente arrastando um certo senhor de idade que já não parecia tão composto como sempre se mostrava no passado.

- Victor? – Charlotte exclamou horrorizada – Porque o trouxeram aqui?

Até mesmo Richard olhou confuso para seu irmão, enquanto Henrique exibia um ar soberbo de "Bem feito..." ao encarar Charlotte. Philip e Stevan se entreolharam com certa admiração nos olhos pela esperteza demonstrada por James. Nathaniel unicamente olhou para Victor como se estivesse olhando para um pobre camundongo encurralado digno de pena e mais nada.

- Já que sabemos que você provavelmente não dedurará sua dita familiazinha sem um bom incentivo, a presença de Victor Hulpvan se faz necessária como esse "incentivo" necessário para abrir sua boca, senhorita Charlotte...

- Pretende torturar Victor caso não escute de mim o que deseja ouvir? – Charlotte indagou com fúria preenchendo seus olhos e os punhos cerrados ao lado do corpo.

- Minha rainha, não se renda... – Victor murmurou fracamente, seu olhar mais triste por sua rainha do que realmente com medo da própria situação.

- James – Richard chamou a atenção de seu irmão com clara reprovação – Eu não acho que essa seja uma boa atit...

- MAJESTADE! MAJESTADE! – Um guarda abriu barulhentamente a porta daquela sala e entrou gritando desesperado – TEMOS NOVAS VISITAS!

- Como ousa interromper um interrogatório tão importante quanto esse? – James se levantou da cadeira e repreendeu com veemência o guarda exasperado e pálido que havia entrado sem permissão – Você deveria ser executado por esse desplante!

- Mas meu senhor, é que as visitas são muito... – O homem estava tão aturdido que mal conseguia formular frases corretamente.

- Quem são essas tais visitas que você acha importante o bastante para arriscar seu pescoço nos interrompendo? – Richard perguntou já sem paciência – Diga de uma vez!

O guarda engoliu em seco nervosamente antes de responder a seu rei com a voz trêmula:

- As visitas são... o ex-rei do Gelo Leonard Verkoudheid juntamente com seu filho John Verkoudheid e seu neto Ethan Verkoudheid...

O silêncio que se seguiu foi mais profundo que o de um enterro.

E o burburinho posterior foi mais alto do que o de uma festa.

Beleza Aprisionante - História dos Quatro ReinosOnde histórias criam vida. Descubra agora