Cap. 4 - O segundo encontro

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Conforme o tempo foi se passando, mais e mais pedaços do gelo iam se quebrando com fortes estalos que lembravam fielmente um pescoço se quebrando. Balancei a cabeça para afastar a imagem das vítimas que um dia mancharam minhas mãos de sangue e me enchiam de pesadelos.

A tarde já estava quase no fim, o céu pintado em tons pastéis forneciam pouca luz ao que conseguimos salvar do acampamento. Tentas foram montadas, o fogo apagado e os mortos foram cremados um por um e suas cinzas guardadas para devolver aos parentes.

—Do fogo surgimos e ao fogo retornaremos. — A voz de meu tio soou baixa quando acendeu a última pira com uma tocha.

—Que os deuses o recebam. Nos encontraremos novamente. — falei para que todos ouvissem quando a chama tomou conta do corpo do soldado e sem dizer mais nada, virei e sai dali.

Havíamos feito aquilo quarenta vezes. Quarenta. Eram muitas mortes por nada. Aquilo tinha que acabar, eu tinha que fazer algo, não dava mais para viver daquele jeito, apenas esperando o próximo velório, o próximo massacre. E o culpado por tudo aquilo estava bem ali. Eu tinha Aibek em minhas mãos, poderia acabar com aquilo de uma vez por todas, ou quem sabe....

"O que eu devo fazer?" perguntei aos deuses, mas haviam se calado, nem mesmo o arrepio na nuca permaneceu para me guiar. Aquilo não era novidade.

O frio estava mais suportável apesar do cair da noite, havia tirado minha armadura e elmo, mas a roupa que vestia ainda estava encharcada e meus cabelos pingando por onde quer que eu fosse. Porém não era isso que me incomodava, minha mente trabalhava tão rápido que havia se desconectado do meu corpo e a única coisa que conseguia pensar era no que iria fazer com o novo prisioneiro.

—Aqui, senhora. — Lina fez menção de pôr uma capa sobre meus ombros trêmulos.

—Não, estou bem, obrigada. — disse ao fugir de seu toque e continuei a andar para longe das quarentas piras e do calor que elas emanavam, os olhos fixos na grama sob meus pés, de soslaio, vi Arthur me seguir.

Lina e Arthur, que não havia saído do meu lado um segundo sequer desde que se certificou que o rei de Misecina não iria fugir, trocaram olhares significativos e o mais velho estendeu a mão para a bela arqueira, que lhe entregou a capa.

—Senhora. — Arthur chamou uma vez, mas não lhe dei atenção. —Senhora, venha aqui! — novamente ele chamou, mas não era um pedido e sim uma ordem.

Devagar olhei em seus olhos, encarando o mar turquesa que eram e vi que não devia estar com a melhor das aparências. Examinei minhas mãos e me assustei ao perceber que os dedos estavam meio roxos e extremamente sensíveis.

—Pois é, então deixe de teimosia e venha se aquecer, os rapazes já fizeram uma fogueira e prepararam o jantar. — disse Arthur, mas sua voz soava não como um general e sim como eu o conhecia melhor, um amigo, um protetor. Foi por isso e só por ele que deixei-me ser vencida e permiti que ele me enrolasse na capa.

—Aqui, venha comer algo. — Ele chamou ao passar a mão pelo meu ombro me guiando até o centro do acampamento, onde uma enorme fogueira tinha sido acessa e um porco selvagem era assado.

—Onde ele está? — perguntei a ele enquanto estendia as mãos para o fogo, esfregando uma palma na outra, a pele agradecendo pelo calor, que diferente do que havia dentro de mim, não ardia nem parecia querer me matar.

—Preso a uma árvore. — O general foi curto, sem detalhes, então se sentou em um tronco no chão e fingiu estar mais preocupado com o porco assado que recebeu de um dos soldados. —Obrigado. —

—Me leve até ele. — Pedi depois de um tempo ponderando.

A noite se aproximava, rápido, e com ela o que restou do inverno. Sem sombra de dúvidas, sabendo do ódio que Arthur tem de Misecina, o rei havia sido deixado ao relento, entregue à própria sorte. A temperatura baixava rapidamente e se ele estivesse com tanto frio quanto eu estava, iria morrer antes do amanhecer e já não importava o que decidisse fazer com ele.

O Povo do Sol - As Crônicas de NildedracOnde histórias criam vida. Descubra agora