Um plano. Um bom plano era do que eu precisava. Não podia ficar à mercê dessa mulher maluca. Que tipo de pessoa põe o próprio pescoço contra uma espada? E o pior, não demonstra o menor medo da morte? Eu nunca tinha visto algo assim, e ela ainda tem a coragem de dizer que não são bárbaros. Piada. Mas em uma coisa eu tinha que concordar com ela, eu não conseguiria chegar em casa sozinho, quem dirá sobreviver a fome e ao frio do norte sem ajuda. Preciso dela.
Chego a me arrepiar com a ideia.
Lembrei-me de meu tutor na infância, um homem gentil e inteligente que sempre insistia que eu aprendesse o básico sobre sobrevivência. Eu nunca lhe dei ouvidos, é obvio, ou não estaria preso nessa situação, achava que não precisaria de suas lições, afinal eu era um príncipe e sempre conseguia tudo o que eu queria.
Nunca estive tão errado em toda minha vida. Gostaria que ele estivesse aqui, me aconselhando como sempre fizera. Ele saberia o que fazer, como sair dessa situação. Infelizmente, eu não sei. Só me resta seguir a comandante de Solarni até que que ela me leve de volta para casa, então eu poderia fazer o que quisesse com ela. Não era o melhor plano, mas poderia pensar em algo melhor depois que atravessássemos a fronteira.
—Vê se consegue permanecer na égua dessa vez. — Ela brigou depois que terminou de limpar o corte em minha testa, pegando minha mão e pondo o lenço sujo de sangue nela. —Talvez fique cicatriz. — E então saiu emburrada, batendo o pé com força no chão, o que foi engraçado devido ao seu tamanho.
—Do que está rindo? — ela virou, os olhos castanhos semicerrados e a boca contraída, parecia saber exatamente o que se passava na minha cabeça.
Eu não tinha percebido, mas estava rindo. Parei no mesmo instante.
—Não estava rindo. — Menti indo até ela. —Só estava me perguntando o seu nome. —
—Por que se importa? Sou apenas uma selvagem, não é mesmo? — ironia pura iluminava seus olhos quando ela montou no cavalo.
—Você é insuportável. — Imitei sua expressão e montei na égua, segurando as rédeas apenas para manter um pouco do equilíbrio, já que o animal não me obedeceria mesmo.
A comandante riu e deu o comando para que os cavalos partissem e assim eles o fizeram. Cavalgamos por alguns minutos em silêncio, até que finalmente chegamos ao forte oeste. Lembro-me de que meu pai tentou diversas vezes invadir Solarni por aquele forte e sua ponte levadiça, nunca entendi o porquê de ele não conseguir até ver com meus próprios olhos.
A fortaleza que surgia na minha frente era feita de pedras brancas, com altas paredes e quatro torres em cada extremidade. Plantas trepadeiras estavam espalhadas por todo lado, o tom de amarelo das folhas fazendo-a parecer com uma cachoeira de ouro. Era pequena, admito que imaginei que seria maior, mas era sólida e muito bem guardada. Apenas na entrada conseguir contar cinquenta homens, alguns no portão de madeira maciça e outros, arqueiros, acima dos muros com suas flechas apontadas para nós dois. Se era assim que eles recepcionavam sua comandante, não queria nem imaginar o que aguardava do outro lado.
—Abram o portão. — Um deles gritou quando estávamos apenas alguns metros de distância. Ele usava uma armadura dourada sem adornos idêntica à que vi os outros soldados usarem no dia anterior e sua aparência lembrava a da comandante.
O portão se abriu em dois lentamente e sem hesitar, ela guiou os cavalos até ele.
—Olá Cathan, como vão as coisas por aqui? — ela falou com o homem armado até os dentes como se fossem velhos amigos.
—Senhora. — Ele fez uma rápida mesura e olhou rapidamente em minha direção, me ignorando completamente em seguida. —Está tudo tranquilo, os rapazes nos avisaram do ataque ao leste e estamos alertas, reforçamos as defesas. Lina nos avisou que viria. — a intimidade com que Cathan falou o nome da bela arqueira me vez imaginar se os dois não eram um casal.
—Ótimo. — Ela respondeu séria, nem um pouco parecida com a mulher que sorria sarcasticamente pra mim a poucos minutos. —Agora peça para que abram o portão norte. —
—Senhora? — o homem arregalou os olhos.
—Você me ouviu muito bem Cathan, acho que não preciso repetir. — um comando e nossos cavalos avançaram, trotando pelo largo corredor até que estivéssemos dentro da fortaleza.
Cathan nos seguiu e fez um gesto com a mão para um dos homens acima e o som familiar de correntes tomou conta do local. Enquanto a ponte era baixada, aproveitei para examinar tudo ao meu redor. Havia um pequeno exército guardando o local, espadas, arcos e flechas e até alguns canhões estavam estrategicamente postos no andar superior, prontos para serem usados. Uma cozinha ao ar livre emanava um cheiro delicioso de ensopado e várias tendas preenchiam o pátio central. Não havia um castelo, apenas muros, soldados e armas.
—Irei acompanhá-la, senhora. —Cathan se ofereceu quando a ponte chegou até o chão com um baque forte.
—Não será necessário. — A comandante foi firme e não olhou para o soldado quando falou.
—Mas senhora? — ele insistiu, mas uma vez olhando para mim com o nariz levemente franzido, parecia estar a par de quem eu era ou pelo menos de onde eu vinha.
—O assunto já foi discutido Cathan. Arthur está no comando, ele vira em breve com novas instruções. — Ela falou ainda sem olhar pra ele, os olhos fixos na ponte e no que estava além dela, uma comandante ordenando, sem margens para discussão.
—Sim, senhora. — Cathan fez mais uma mesura.
A comandante não se despediu, apenas fez os cavalos começarem a andar e minutos depois havíamos saído da fortaleza e atravessamos a ponte.
Parecia loucura, mas no momento em que atravessamos a fronteira e entramos no território de Misecina, meu reino, o ar ficou diferente, mais frio e lascivo, como se nem mesmo o sol gostasse daquela terra. Inspirei profundamente, enchendo meus pulmões com aquele ar. Em breve, muito em breve, estaria em casa, mas enquanto isso, tinha que manter as aparências como minha guia.
—Quem era aquele? — perguntei como quem não quer nada.
—Cathan? —
Balancei a cabeça afirmando, ignorando o som das correntes recolhendo a ponte atrás de nós.
—É o capitão da fortaleza. —
Capitão da fortaleza. Cathan, assim como sua comandante, não era velho, devia ter no máximo minha idade, mesmo assim, estava no comando daquele lugar. Lembrei na mesma hora de meu conselho de lordes, os homens que realmente mandavam em Misecina, a maioria eram velhos ranzinzas sem visão de um futuro. Nunca me importei muito com a câmara do conselho, mas desde que me tornei rei, aqueles homens vêm me atormentando dia e noite com seus desejos incontroláveis por dinheiro e guerra.
Talvez os solarnianos tivessem razão ao colocarem os jovens no comando.
—Ele não pareceu gostar muito de mim. — falei mas para continuar a conversa do que qualquer outra coisa.
—Ninguém em Solarni gosta, majestade. —
Gostaria de ter ficado chateado com o comentário irônico de minha acompanhante, mas era a verdade. Eu era o inimigo, o rei do reino vizinho que a anos tentava tomar aquelas terras. Como alguém ali poderia simpatizar comigo quando nem mesmo os de minha casa o faziam?
—Aurora. — Ela falou olhando pra mim.
—O que? —
—Meu nome. É Aurora. — Ela repetiu e continuei sem entender.
—Por que está me contando isso agora? — perguntei desconfiado.
—Essas terras são cheias de ladrões de Blizanci e Zvezda e animais perigosos. Se alguma coisa der errado e nos separarmos...sabe, caso você precise... — as bochechas dela ficaram vermelhas. —Enfim, se precisar de ajuda saberá como me chamar. — Ela terminou, deu de ombros e voltou a olhar pra frente.
"Se precisar de ajuda, saberá como me chamar." As palavras ecoaram em minha mente.
Será mesmo que ela estava disposta a me proteger, a me ajudar? Aquilo não fazia o menor sentido. Por que aquela mulher estava arriscando sua vida vindo comigo pra casa? Eu não sabia, mas planejava descobrir.
—Aurora. — Repeti apenas para mim, sentindo um calor tomar conta de minha boca ao pronuncia-lo.
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O Povo do Sol - As Crônicas de Nildedrac
FantasyNa vida, no amor, na guerra, eu não posso mais me dar o luxo de perder. Solarni já sofreu muitas perdas, eu já sofri o suficiente. Todos precisam de paz. Eu preciso. E depois de anos lutando uma guerra sem sentido, os deuses antigos guiaram meus pas...