Capítulo I

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As sombras se aproximavam lentamente, tais como uma legião de insetos rastejantes, desafiando o Sol que se impunha alto no reino das distantes nuvens. Avançavam em meio às árvores do bosque que se tornava floresta, prolongavam as sombras do rochedo despido. Eram a sua própria fonte, a escuridão que projetava suas sombras, faces indecifráveis contra o brilho do astro-rei.

O Mosteiro das Velas se mantinha imponente, à sua maneira, na pequena colina acima da floresta. A construção de pedra sobre pedra tinha um forte ar sombrio que era quebrado pelas luzes das velas e lampiões, os quais brilham como as estrelas de um céu próximo das almas mortais. Por seus sistemas transitavam os monges de Bartolomeu, o sangue que dá vida ao local, levando os enfermos de um lado ao outro, orações reverberando através da dura pele do monastério.

Já passava um pouco da hora do almoço. Alguns dos monges se recolhiam juntamente de alguns dos internos para as preces diárias, se estes assim quisessem; muitos continuavam suas atividades de faxina, na cozinha ou nos espaços de agricultura. Havia ainda um terceiro grupo que acompanhava de perto os enfermos, os detentores da Herança de Bartolomeu, pequenos cristais que nada mais eram do que Materiais Divinos com capacidade analgésica inferior, muito comum ali no monastério.

Ou pelo menos foram comuns na época do Bartolomeu, explorado comercialmente após sua morte e tendo deixado como herança para o monastério aqueles poucos que ainda estavam ali hoje. Só grandes quantidades intactas eram capazes de realizar façanhas medianas para a medicina, o que por um lado levou ao rápido esgotamento das jazidas, mas permitiu que aquelas peças já utilizadas pelos monges ali continuassem. Isso até o Império recolher metade dos monges aptos a utilizar a Herança e também parte da herança. O preço para manter o monastério era reduzir sua capacidade medicinal.

Tudo tem um custo.

Túlio andava pelo jardim noroeste, palco de um pôr-do-sol normalmente de visibilidade parcial onde muitos dos internos gostavam de ficar e aguardar. Ia de uma pessoa à outra, homens e mulheres feitos, abandonados em algum momento pela esperança despedaçada em feridas profundas de guerra, pela família que agora os enxerga como estorvo quando a idade avançada chegou, pela sociedade que não vê competência por conta da deficiência que carregam. Carregam a doença que impuseram a eles e só estão curados de suas enfermidades enquanto vivem seus últimos dias no monastério. Sejam esses dias finais a próxima semana quando começam as chuvas ou em muitas décadas, quando reis tiverem caído.

O rosto quadrado do jovem monge de cabelo bem batido era contido de suas emoções enquanto caminhava, mas logo um largo sorriso amarelo se abria para perguntar como se sentiam os internos naquele dia. As respostas que recebia todos os dias eram sempre iguais, o que não necessariamente significava que a mesma pessoa respondia da mesma forma a cada dia.

As folhas das árvores farfalhavam, tingindo de verde o silêncio. Os pardais pulavam no chão em busca de sementes sem em nada interferir na harmonia verde. Caminhou até mais um dos internos, um senhor de longos e sujos cabelos cinzentos, um dos braços amputado até a altura do cotovelo, sentado numa cadeira de rodas. Ele olhava para os pardais serelepes do jardim, os via partindo e centrava sua atenção numa árvore em busca de novos pardais para observar.

-Túlio! – chamou uma voz rouca dissonante da orquestra verde. Era outro monge que se aproximava, muito magro sob a toga cor de musgo, barba feita e cabelos bagunçados.

-Irmão Carlos! – respondeu Túlio, fazendo uma pequena reverência ao monge mais velho – Algo que necessite no momento?

-Vim pedir que auxilie o irmão Isaque com as portas do templo. Ele foi consertar e, bem, a situação piorou – Fez uma careta ao concluir a fala. O jovem monge deixou uma risada escapar ao presenciar a cena à sua frente.

-Estarei indo em instantes. Preciso só de um minuto ou dois aqui – Se preparou para dizer algo mais, porém engoliu a sinfonia verde foi sobrepujada pelo grito de fogo.

Muitos dos que no jardim estavam olharam ao redor em visível pânico procurando pelo dono da voz ou de sinais de chamas. Não demorou muito até a fumaça começar a subir de um dos cantos do monastério, o que indicava que um dos raríssimos casos de incêndio pelas velas ocorrera. Quando o segundo foco de chamas foi avistado juntamente de pessoas correndo desesperadas tentando salvar a si mesmos ou aos internos é que Túlio constatou que se tratava de um ataque.

Ao longe viu pessoas vestidas de preto, tais como sombras, carregando tochas e pequenas esferas que se partiam com som de vidro ao serem arremessadas, alimentando as chamas que se alastravam rapidamente. A pele do Monastério das Velas queimava, mas iria sobreviver a mais essa. Era melhor que...

-Corra, Túlio! – exclamou a voz rouca do irmão Carlos – Leve este senhor para uma das passagens de segurança! Ele não vai conseguir sair sozinho! Estarei organizando a saída dos demais. Nossa prioridade é a vida dos internos, porque o monastério vai salvar a si próprio. Vamos! Rápido, rapaz!

E Túlio correu, conduzindo consigo a cadeira de rodas do idoso, este último começando a dar sinais de estar ansioso quanto ao que ocorria ao redor, mas sem soltar uma palavra sequer. O jovem monge seguia para a saída nordeste, uma série de corredores que levavam para a floresta abaixo e que era uma passagem difícil para qualquer um que não fosse um dos monges.

Chegou ao portão da saída de segurança, a qual já estava aberta, dando sinal de que ou algum outro monge passara por ali da forma mais discreta possível ou simplesmente fora aberta por ser um protocolo para emergência. Viu que se tratava da segunda opção ao ver que um monge mais rechonchudo abrira a passagem para ele e indicando que se apressasse.

Antes de acabar de passar pelo portão, viu ao longe que os invasores se aproximavam, tochas e granadas nas mãos. Um deles, Túlio percebeu, abaixou a máscara que tampava o rosto e cuspiu chamas no teto e na parede. Um usuário de Materiais Divinos, com certeza.

Descia com o coração saltando do peito, em total frenesi pelo o que ocorrera. O caminho até chegar à floresta era sinuoso e consumia um bom tempo. Olhou para aquele que estava ali na cadeira e se tocou que nunca ouvira a voz daquele senhor. Quem era ele?

Sob a terra agora habitaOnde histórias criam vida. Descubra agora