34 anos em duas páginas

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Phelipe me disse que o encontrou nas proximidades fora da cidade.

O sujeito era calado, estranho e não pertencia a região. Não tirou o seu elmo, como de costume, quando foram se cumprimentar, um sinal de barbárie, como dizemos aqui em Córdia. Além disso, foi me dito que ele usava uma armadura velha, enferrujada. No final, Phelipe fez a proposta ao estrangeiro e ele a aceitou, disse que precisava de dinheiro para navegar.

Navegar! Ainda há homens loucos como ele no mundo, não nego que achei fascinante. Desde que o sol se apagou, nós humanos cultivamos, nesses 300 anos de escuridão, um grande pavor pelos oceanos. A lua continua muito próxima, a querida lua que, enquanto nos fornece da sua energia para a sobrevivência de nossa espécie, ao mesmo tempo, enraivece as marés das águas salgadas, deixando-as inavegáveis.

Mas esse sujeito queria navegar, assim como eu.

Mais interessante do que isso é o seu nome, chamava-se Hélio, imagino que fosse uma esperança de seus pais ou avós, quem sabe? Hélio, aquele que deriva do sol, o esquecido sol, um nome quase místico.

Pois bem, ele aceitou a oferta de ser um dos guardas para a minha proteção, afinal, esse diário se inicia dessa forma, com o meu julgamento.

Meu nome é Eurípedes e, antes de prosseguirmos, precisarei fazer um condensado da minha vida até o presente momento.

Nasci em uma família abastada e demorei a aprender o valor do trabalho, pois nunca havia trabalhado. Isso era, para uma família como a nossa, algo não digno. Era dever dos escravos e daqueles que não tinham dinheiro passar as suas horas no campo, arando a terra e semeando. Enquanto isso, as minhas horas eram destinadas a Academia de Ésterli, foi lá que estudei sobre a maior parte do que sei hoje, e também foi lá que comecei a questionar sobre a maior parte do que sei hoje.

As guerras e a economia são guiadas pelos que estão no poder, assim também é o conhecimento, os livros, os registros, tudo pode ser e pode não ser!

Saí da Academia de Ésterli aos 28 anos de idade para explorar outras cidades independentes como Córdia. Uma das melhores decisões de minha pacata vida. Aos 32 anos voltei a minha casa depois de receber uma carta me relatando sobre a morte de meu pai. Eu deveria tomar posse de seus negócios. E tomei.

A minha primeira ação foi libertar todos os escravos que foram registrados em meu nome, o que, curiosamente, gerou uma revolta por parte dos políticos de Córdia, disseram-me que isso poderia ser a semente para uma provável rebelião de escravos na cidade. E assim eu esperava.

A escravidão em Córdia existia de duas formas: dívida ou prisioneiros de guerra. Eles eram, primeiramente, considerados propriedades do Estado, para em seguida serem vendidos a pessoas de nome e riquezas. O Estado angariava recursos com isso para a cidade e o comprador tinha agora uma mão-de-obra quase sem custo.

Perguntei uma vez ao meu professor da Academia do porquê de termos direito a vida de outra pessoa. Ele me respondeu que eram as leis de Córdia. Questionei então quem havia feito as leis. Os políticos, é claro. Perguntei a ele, dessa vez, o porquê de os políticos terem direito à vida dos escravos. "Os políticos sabem o que é melhor pra cidade".

Uma mentira degenerada. Eles sabem, na realidade, o que é melhor para eles e como manterem isso. No momento em que libertei os escravos aderidos ao meu nome, uma engrenagem saiu do lugar e foi o suficiente para criar um desconforto aos líderes de Córdia.

No mesmo ano decidi criar uma sala de aula. Deveria ser pequena, a princípio, e não chamar atenção. Nela, eu contei aos meus alunos sobre as diferentes realidades de outras cidades independentes que conheci em minha viagem de quatro anos. Senti-me um tolo por ter que ver a miséria de outros povos primeiro para só então entender a miséria do nosso povo. A fome, o cansaço, a desilusão de uma vida melhor.

Pois bem, estou me estendendo demais nisso tudo. Eu confesso que havia viajado para as outras cidades a fim de estudar sobre a lua e o sol, mas de quase nenhuma informação fui concebido. Ainda assim, tudo isso me auxiliou a ver o objeto por outro ângulo e outra posição, diferente do que ensina a Academia de Ésterli. A partir disso, era meu objetivo fazer a diferença.

Durante dois anos a minha sala de aula e as minhas ideias prosperaram, afetando a cidade, mas em dado momento, os políticos me acusaram de subversão das jovens mentes de Córdia e me proibiram de discursar, seja em público, seja em minha classe.

Obviamente, continuei. E cá estamos, um julgamento acontecerá em três noites para decidirem se sou ou não digno da pena por cicuta, e escrevo isso com sarcasmo. Ainda não enxergo se se continuarei ou não a perseguir o meu infeliz propósito, e não estou falando de mudar a base da dissimulada sociedade de Córdia, mas do meu propósito mais egoísta, mesquinho. Não lhes direi ainda qual objetivo é esse. Antes disso, esperemos para ver se passarei ao mundo etéreo!

Phelipe, muito mais velho do que eu, é um amigo leal que já auxilia o negócio da família há anos e, o melhor de tudo, compartilha de meus ideais. Ele me contou que cinco homens irão vir amanhã para atuarem como meus protetores. Fiz questão de recrutarem pessoas de fora da cidade, pois não confio nos guerreiros Cordianos, há muita corrupção entre eles, a probabilidade de todos serem pagos por algum dos políticos é sempre alta, principalmente por Timur, o Soberbo. Timur é um dos homens que compõe a aristocracia de Córdia, o maior entre eles, não financeiramente, mas em retórica, é capaz até mesmo de te convencer que o sol não desapareceu, um grande mestre da falácia! Poderia ser um grande aliado da abolição, mas preferiu ficar entre o miasma da aristocracia escravocrata que detém o poder.

A areia da ampulheta está quase toda na base, a primeira noite está no fim, preciso descansar.

O Diário de EurípedesOnde histórias criam vida. Descubra agora