Suicidal Dream

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Chego ao ponto de partida ainda deixando o carro ligado. Como cheguei minutos antes do prazo previsto pelo aplicativo eu espero. A vizinhança era tranquila. Casarões com portões de grade e jardins enormes na frente, bem parecidas com as casas dos Alfas de Arklin, com a exceção de que essas eram revestidas de madeira para o inverno.

Viajo nos pensamentos me permitindo ter aquele pequeno momento de paz, o que era raro. De repente uma criança e uma mulher saem da casa ao lado e eu volto meus olhos ao celular, já se passaram dez minutos. Que porra, além da péssima memória, eu já não tenho nenhuma noção do tempo. Retiro o aparelho do suporte e digito:

"Bom dia. Já cheguei no local"

A mensagem foi apenas visualizada. Um incômodo sentimento cresce no meu peito, quase como uma emoção, mas isso era impossível. Eu não seria ignorado pelos humanos também. Buzino algumas vezes em sinal de aviso de que eu iria embora. Eu nem era obrigado a fazer isso, deveria simplesmente encerrar a corrida e ir embora, mas não queria sair sem fazer nada. De repente o portão se abre e uma madame granfina sai de lá de dentro com um vestido branco justo, blazer e salto alto. Devia ter quase cinquenta anos mas seu corpo não aparentava, me permito reparar nos detalhes apenas porque estava tentando sentir alguma coisa, mas meu coração aperta só de pensar nisso.

— Bom dia — digo enquanto ela entra no assento do carona ao meu lado.

Ela não responde de imediato, mas eu sabia que tinha ouvido, eu disse em alto e bom tom. A madame de nome Suzana se acomoda e põe a bolsa no colo. Não dou partida.

— Nicholas, não é? — ela pergunta e eu confirmo com a cabeça sem olhar pra ela — Por que ainda estamos parados?

— Coloque o sinto de segurança por favor.

Ela da risada, mas após ver que eu estava falando sério ela limpa a garganta e obedece. Sempre exigia que todos fizessem isso, eu poderia ser um louco no trânsito quando estava sozinho, mas ao levar humanos eu não gostava de correr riscos desnecessários. Espero que ela termine de pôr o cinto para finalmente iniciar a corrida.

— Será que pode ir mais rápido? Tenho um compromisso.

"Então porque não saiu de casa quando eu cheguei?" penso, mas guardo pra mim. Em outra época eu jamais deixaria essa passar.

— Você deveria ter buzinado assim que chegou, eu já estava pronta naquela hora... — a mulher ao meu lado continua a falar — Eu vi sua mensagem mas não sabia que eu devia vir imediatamente, não estou acostumada a usar aplicativos desse tipo mas meu motorista teve que se ausentar hoje. Eu disse a ele que era só uma gripezinha mas aí pensei melhor, não quero ter dividir o ar com uma pessoa doente.

Continuo em silêncio por alguns segundos. Minha mente estava dividida em milhares de pedaços, e eu demoro mais do que o normal para formular um pensamento coerente. Já estávamos quase chegando ao destino quando meu incômodo falou mais alto, então resolvo perguntar:

— Então a senhora viu que eu estava parado há dez minutos na frente da sua casa e não saiu?

— Sim, mas como eu ia saber que você não era um estanho? — ela se justifica — Você tem que buzinar.

"A senhora não conferiu a placa do carro, perguntou meu nome somente depois de ter entrado no carro e nem se deu o trabalho de me digitar de volta..." Quero dizer, mas me contenho novamente. Havíamos chegado.

— Tenha um bom dia. — digo contra a minha vontade. Se fosse em outra época eu teria respondido de forma apropriada, ou melhor, nem estaria aqui.

— Muito obrigada, rapaz! Você é muito gentil, o último motorista desse aplicativo ficou resmungando quando teve que buzinar também, mas você agiu certo! — ela ajeita a bolsa para sair.

— Senhora, eu só não vou responder o que eu gostaria porque eu tô muito dopado agora. — eu não deveria ter dito aquilo mas não me arrependo.

— Como é que é?

"Porra, sai logo do meu carro!" grito em pensamento, mas não consigo expressar. Sinto que todos esses sentimentos contidos uma hora vão me deixar maluco, eu já não sei mais o que fazer, então apenas vou levando. Felizmente, a mulher não parecia muito afim de discutir comigo.

Suzana sai do carro com uma carranca assustada. Ela deveria achar que eu estava usando drogas ilícitas, mas também não me importo. Faço questão de deixar uma avaliação negativa para ela, coisa que eu nunca fazia, mas duvidava que ela fosse pedir outro carro pelo aplicativo depois dessas experiências ruins. Ao menos eu livraria mais alguns pobres coitados de transportarem essa imbecil. Depois dessa decido ir para casa. Ainda eram dez horas da manhã mas mesmo assim desligo o aplicativo. Verifico minhas mensagens e havia algumas chamadas perdidas do meu irmão, mas não havia a menor chance de eu retorná-las agora.

Os passageiros que eu levava eram geralmente sem noção. Semana passada uma esposa fazia questão de acompanhar o marido até o trabalho, para ter certeza de que ele não faria nenhuma outra parada pelo caminho. Por coincidência eu os levei três vezes no mesmo mês. Não sabia o que pensar da situação, mas acho que no lugar dele eu não reclamaria, ao menos ele tinha uma mulher que se importava com ele. Ontem uma passageira carente e no período fértil mandou a seguinte pérola quando chegamos ao destino:

— Aceita xerecard? — ela passa mão pela minha coxa enquanto morde os lábios.

Olho para ela rapidamente pelo retrovisor. 

— A corrida foi paga no cartão de crédito, senhora. Tenha um bom dia. — aguardo ela sair do carro com um semblante sem graça.

Não era a primeira vez que eu recebia atenção feminina indesejada enquanto estava trabalhando. Por mais bonitas que fossem todas eram comuns e desinteressantes aos meus olhos. Nenhuma se comparava a ela. Suspiro com a cabeça no volante assim que o sinal fica vermelho. Não importava quantos remédios eu tomasse, eu sempre pensava nela. Me diziam que eu iria superar com o tempo, que ficaria mais fácil depois que alguns meses separados desfizessem completamente nossa ligação. Diziam que eu começaria a ter interesse em outras mulheres novamente e que iria esquecê-la. Mas meu coração já partido parecia se desintegrar no meu peito toda vez que pensava nisso.

Eu não queria que nada disso acontecesse. Mas por mais difícil que fosse, eu a deixaria em paz se isso a fizesse feliz. "Ela", eu me perco em seus detalhes, seu cheiro, seu toque... Meus pensamentos se perdem em vários flashes, vários fragmentos. Minha memória já não é mais a mesma, eu não era mais o mesmo. Uma buzina ressoa de algum lugar e eu percebo que estou parado diante de um sinal verde. Apenas dirijo, ainda atordoado, e decido que não estou mais em condições para isso. Decido ir para casa.

Uma sensação estranha me atormenta dia após dia e beira um estado emocional, ainda que eu não fosse capaz de sentir emoções. Minha mente está mais embaralhada do que um quebra-cabeça no escuro, mas como expressar isso em palavras? Como vou poder pedir ajuda se nem ao menos sei como definir quem ela é. A confusão me desperta para algo muito errado, mas também me mantém conformado, pois se eu tivesse que sentir alguma coisa de novo eu provavelmente me jogaria de uma ponte. Ainda assim, eu só queria ser capaz de entender porque sempre que eu fecho os olhos, é como se minha alma encontrasse abrigo em outro rosto, e não no da mulher que me rejeitou.

Cry Wolf (Em Andamento/Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora