Capítulo 4

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Voltei! Tirando as teias de aranha e poeira espalhadas por aqui depois de meses.
Às vezes a gente faz planos, mas a vida - leia-se boletos - dá três tapinhas na nossa cabeça e fala: - Não, meu bem. Não vai rolar assim não, tá?
Brincadeiras à parte, foi a correria da vida mesmo que me fez suspender as publicações. Se ainda tiver alguém por aqui, desculpe.
Enfim, segue o capítulo. Capítulo este betado por mim, qualquer absurdo, avisem, por favor.

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Ao olhar pela janela da cozinha, Ikki viu Shiryu meditando no karesansui. A cena era quase etérea e, em certa medida, inimaginável há tempos. Não se julgava capaz de estabelecer uma relação próxima e íntima com alguém sem algum - muito - esforço, mas desde a conversa que tiveram há dois dias, a convivência entre eles se tornou consideravelmente mais estreita e agradável. As conversas e interações amenas que desfrutaram juntos esses dias faziam um sentimento caloroso percorrer seu corpo, poderia e, sendo bem sincero consigo mesmo, gostaria de se acostumar com isso.

O sorriso suave que Ikki trazia nos lábios enquanto lavava as mãos para iniciar o preparo do café da manhã vacilou ao pensar que nunca tivera algo parecido na vida, então em um lampejo, os cabelos loiros e a voz doce de Esmeralda vieram à sua mente. Se não fosse por ela, seus dias naquele inferno teriam sido infinitamente piores. Os momentos que passaram juntos amenizaram o sofrimento e a solidão que sentia. Esmeralda foi e sempre seria uma parte muito importante de sua vida, tanto é que perdê-la fora o estopim para o mergulho na espiral de ódio onde se viu preso por um longo tempo, isso era inegável. Entretanto, a presença calma de Shiryu pela casa era reconfortante de um modo completamente diferente. Tinha consciência de que parte dessa diferença dava-se pela conclusão lógica de que se tratavam de pessoas diferentes; a outra parte residia no fato de saber que o Ikki de hoje não era o mesmo de anos atrás, ele sequer era o mesmo de alguns meses.

O Ikki do passado pôde sim ter alguém em quem se apoiar, mas seja por talvez considerar o peso que carregava na época suportável apesar de tudo ou quem sabe por, inconscientemente, não querer macular o que Esmeralda representava para si, alguém com quem se permitia fugir da realidade cruel onde fora arremessado, aquele Ikki evitava compartilhar com ela uma parte enorme do que lhe afligia. Contudo, a maturidade e, principalmente, os eventos da Guerra Santa fizeram o Ikki de hoje entender que o cuidado e o afeto normalmente se firmam em uma via de mão dupla, que um vínculo forte e profundo tem como um dos pilares a reciprocidade. Ikki sabia agora que a postura adotada desde a infância vinha do sentimento de proteção que Shun despertava em si, afinal eles só tinham um ao outro e o irmão caçula era tão pequeno e sensível que se sentia na obrigação de ser forte pelos dois.

Durante as batalhas que travaram juntos, seus companheiros não pareciam guardar mágoas de si. Sua presença nunca foi rechaçada; mais ainda, parecia bem-vinda, talvez até aguardada. Dada a urgência da situação em que estavam, e que Ikki internamente julgava ser a razão da atitude adotada pelos outros, a estranheza inicial que o comportamento dos companheiros de batalha causava foi empurrada para algum lugar dentro de si e esquecida até estar frente a frente com o irmão mais novo nos poucos dias em que permaneceu na mansão Kido. Shun buscava sua companhia sempre que podia e era impossível não perceber a ternura e o afeto daqueles olhos verdes quando estavam voltados para si. Fugiu do Japão - sim, admitia a fuga - não apenas por causa da insistência de Saori a respeito da herança, fugiu principalmente do amor que via refletido no olhar de Shun; amor esse que não acreditava mais merecer. Sem traçar rotas ou esboçar um planejamento, Ikki partiu sem um destino certo, esperando que a distância física acalmasse o turbilhão de pensamentos e sentimentos que lhe revirava o interior. Por pouco mais de um mês aquilo pareceu funcionar, até que, deitado na cama do pequeno quarto de albergue em uma tarde ociosa qualquer no meio da semana, pegou-se correndo os dedos pela fotografia dos dois. Foi nesse momento que se deu conta de que aquela criança indefesa, que deveria ser protegida e poupada de tudo, não existia mais. Os acontecimentos que precisaram enfrentar fizeram-na amadurecer - rápido demais - e o jovem que ela se tornou mostrou-se capaz de ainda lhe amar, por ser capaz de perdoar. À medida que esse entendimento se fixava trazia consigo o desejo de reconstruir sua relação com o irmão mais novo, dessa vez se permitindo ser cuidado ao cuidar, mas em meio a isso uma certa insegurança pulsava sorrateira, infiltrando-se no peito de Ikki como um receio mínimo mas latente de meter os pés pelas mãos e pôr tudo a perder, impedindo-o de dar um passo definitivo em direção ao irmão. Entretanto, enquanto esperava o café passar, a compreensão atingiu-o como um raio; talvez só fosse preciso abaixar a guarda verdadeiramente e deixar que as coisas seguissem seu curso. Obviamente não seria tão simples quanto o que vinha acontecendo entre Shiryu e ele, afinal a relação com os irmãos - ainda era esquisito usar a palavra no plural - possuía pontos sensíveis demais a serem acertados, mas agora não parecia algo tão improvável assim.

Depois do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora