I

1K 24 4
                                    

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais — "Cruzes, minha prima!" — é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento — delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu.

Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.

Uma polca sua — "Siri sem unha" — e uma valsa — "Mágoas do coração" — tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinquenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da rua do Ouvidor.

O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado.

Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além.

Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava, a explorar terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o "seu" mister andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado.

Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador, servente etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, convidou-o a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa.

Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que estivera aqui, a serviço do senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio, enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.

Clara dos Anjos (1948)Onde histórias criam vida. Descubra agora