IX

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Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato de um pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas lojas, nos trens, matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum interesse e sem nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos que tem a nossa vida, mais este do assassínio por divertimento, por passatempo, por esporte.

Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime.

Marramaque não era rico nem andava com joias, sendo certo que não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto, não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das vestes com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que tinha — três mil e tanto — estava intacto; uma carteira, encontrada numa das algibeiras interiores do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto, onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro, feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse metal, com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem: nem mesmo esta peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta de lado a hipótese de roubo, qual poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões de família — nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-se-ia a causa. Seria isso? — perguntavam todos.

A notícia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar de ser domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o notado e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio. A polícia tomou as providências de hábito; mas só iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos; mas pouco, nada adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando, a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do "seu" Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente sobre o "ovo de Colombo". No correr da discussão, alguém dissera:

— Isto é ovo de Colombo.

Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para perguntar:

— Que diabo quer dizer esta história de "ovo de Colombo", na qual todo o mundo fala e não sei o que é?

Entre os circunstantes estava o senhor Monção, caixeiro-vendedor da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a "tocar realejo" aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho, e por bom preço.

Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado. Tinha grande liberdade na roda, e não houve nenhum espanto quando interveio:

— Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo de Colombo"?

— Não, "seu" Mindela.

— É simples. No meio dos sábios espanhóis, depois da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé.

Clara dos Anjos (1948)Onde histórias criam vida. Descubra agora