Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco.
O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças etc. etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão.
Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus encontros pelos caminhos desertos, proezas de desafio à viola e de amor roceiro.
No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo, trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados "gêneros de pequena lavoura", aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos, laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins do ano e começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr do tempo, comprara um bote; e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a Guanabara até o Mercado. Vinha com o "terral" e voltava com a "viração".
O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe, que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio, seria capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.
Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão, com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas.
Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento, na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras, de Casimiro de Abreu.
Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera alguns. Dessa forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino, terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu caiu-lhe n'alma como uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou e sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João da Barra e não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras, havia a semelhança de começarem ambos sendo caixeiros de uma casa de negócio da roça. Cristalizada a emoção profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense, Marramaque resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos também. Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.
De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também, caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com o senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo, a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos vagos e amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto, que ele estimava mais. Era um rapaz português, o senhor Mendonça, Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o contrário do pobre Marramaque. Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu bocado; mas sempre honesto, leal e franco.