VIII

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Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa-fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era raro, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua simplicidade, a maldade, a má-fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que só topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e coleções.

A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa-fé e, como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus cinquenta anos julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade e lealdade, apesar das notícias de jornais.

Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa, logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o "som", o "ouvido".

Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades rudimentares da vida.

Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam, conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembrava colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de papel de música.

Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronha-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém etc. etc.

Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.

Clara dos Anjos (1948)Onde histórias criam vida. Descubra agora