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Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do "seu" Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho. De caminho, deixava a lista de gêneros no "seu" Nascimento, onde pagava tudo por mês.

Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar punha-a tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que dona Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara. Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles que empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.

Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.

Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou — como em geral acontece com as nossas moças —, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos.

Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua compleição individual, o certo é que, a não ser para os serviços domésticos, Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza.

Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não a largava de a vigiar. Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse... A não ser com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de casa para ir ao cinema, no Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes — poucas — para fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres, acreditadas nos subúrbios.

Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.

Clara dos Anjos (1948)Onde histórias criam vida. Descubra agora