VI

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A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil, quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu "trabalho", começado com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser dona Margarida, por causa do "negócio" do Timbó; e o tal aleijado, que lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo de burro.

Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos, a ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas que se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi, entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo, logo procurava empregar violência, para arredá-lo.

É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se de um quase inválido, a força a empregar seria a mínima; e, no que toca a dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.

A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade; mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças que ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não o desmascarando totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao modinheiro.

A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna teoria, condensada numa sentença: "Não se pode contrariar dois corações que se amam com sincera paixão".

Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de que não empregava violência nem ato de força de qualquer natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se sentia absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os suicídios, os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero, que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso, ele não tinha culpa.

Para certificar-se quem era que, na casa do "carteiro", fermentava o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa.

Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa estação, logo após o Méier, interna-se para os lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de "tropa", talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos.

Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis; e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés espalmados, às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila.

Quando o bonde apontava a chocalejar as suas ferragens, estourando que nem um besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções, para sua segurança e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que se movia por intermédio de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do corte.

Clara dos Anjos (1948)Onde histórias criam vida. Descubra agora