II. Première Fissure

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A queda que levara minutos antes enquanto dançava doeu muito menos que aquela conversa. Nenhum passo descoordenado lhe tirava o chão como aquelas palavras, as que tanto receava desde o momento em que realizou sua primeira coreografia e pisou em um estúdio de dança pela primeira vez.

Seu pai nem sequer lhe direcionou o olhar. Parecia muito mais interessado em analisar os emaranhados de números nos papéis que vinham sempre no final do mês. Se não fosse pelo que acabara de ouvir, teria estranhado mais uma vez o fato dele sempre torcer o nariz para tudo aquilo mesmo gastando dinheiro com várias coisas.

— Por que não posso mais dançar? — Ela mal escutava a própria voz. Soava como se estivesse a perdendo, como um eco mal propagado. Como se todas as moléculas presentes em seu corpo estivessem saindo do lugar e desvanecendo.

— Chegou a hora de focar nas coisas que são realmente importantes, Alya.

— O que quer dizer com isso?

— Que está grandinha o suficiente pra saber que devemos abrir mão de coisas que não vão nos acrescentar em nada. Vai pra aquela escola que falamos pra você e aumentaremos seu horário de estudos.

A garota engoliu em seco. As batidas de seu coração não pareciam entrar em acordo quanto ao compasso. Ela sabia que aconteceria, em algum momento, o chão seria lhe tirado de seus pés. Em algum momento, o espetáculo seria diferente.

— Mas pai...

— Está decidido. Não vamos mais discutir isso.

Não conseguia escutar nada além de sons abafados. Dava o seu melhor para manter o olhar firme, sem dar espaço ao mar que lhe queria invadir e transbordar sobre sua face, mas sabia que não poderia permanecer naquela posição.

Não soube quando seus pés tomaram vida própria e correu. Correu sem ouvir seu pai chamando pelo seu nome, sem pedir desculpas por derrubar os papéis de sua mãe após chocar-se com ela no corredor que dava para os quartos, mas lembrou de manter a porta trancada antes de lançar os primeiros objetos que via pela frente na parede.

A coragem de nomear a torrente de emoções que a invadiam não existia. Não se importou com os brinquedos quebrados, com os livros rasgados e amassados, muito menos com a lamparina em estilhaços. Estava de volta aos tempos em que nada entendia sobre as coisas que aconteciam dentro de si. Mas seus olhos marejados não vacilaram, ela reteve o grito. A queda era mais alta do que poderia imaginar.

Não estava pronta, nunca estaria. Passara tanto tempo indo de nuvem em nuvem até esquecer-se de que em algum momento teria de pisar em terra firme. O mundo, porém, lhe foi tirado de si antes mesmo que pudesse dizer adeus.

E foi pensando nisso que tentara ignorar as batidas insistentes na porta. Encolheu-se onde não poderia ser vista e cedeu às lágrimas. Não via nada mais além do vão do céu sem os pontinhos cintilantes que tanto amava. Do outro lado do quarto poderia ver a casinha e as bonecas das quais aos poucos se esquecia, tanto de sua existência quanto das histórias que um dia inventara.

O que havia de tão diferente de sete anos atrás para aquele instante? O que tanto precisava fazer nos próximos anos? Continuaria sendo livre?

Naquela época, sem perceber, ela perdeu a primeira estrela em sua constelação particular. Naquela época, em seus doze anos e em seus primeiros passos para a mocidade, ela não compreendia. Naquela época, entretanto, aos poucos tomava ciência do quanto os adultos eram cruéis.

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