V. Énouement

298 45 20
                                    

Alya não queria conhecer as estrelas.

Não ainda.

Mas havia acordado em uma campina, cercada pelos mais variados tamanhos de dentes-de-leão. Sob o céu ocupado pelos astros mais cintilantes que já vira, a visão nítida de cada uma das constelações, até mesmo das pouco visíveis ao olho nu, a fez sentir de volta ao planetário. A conclusão chegada por ela, entretanto, foi de que nenhum lugar em terra, mesmo com sua melhor tecnologia, conseguiria passar uma imagem tão majestosa do céu como aquela.

Ainda assim ela sentiu um gosto amargo invadir-lhe a boca. Ainda assim, mesmo com o sopro da brisa leve lhe acariciando o rosto, a pontada de desconforto em seu peito apertava com mais força. Por mais que tivesse algum tipo de ideia da finalidade daquele lugar, não conseguia deixar de pensar no que havia feito, no que havia deixado para trás, no que gostaria de um dia ter tentado fazer.

As estrelas cujo brilho emitiam maior intensidade se uniam e, aos poucos, desciam em direção ao campo tomando uma nova forma, uma figura humana: uma mulher tão nova para estar em uma idade avançada, mas ao mesmo tempo velha demais para ser considerada tão jovem. Os pontos de luz eram perceptíveis da cabeça aos pés, até mesmo o vestido branco que trajava parecia ter sido tecido pelos corpos celestes, uns reluzindo com mais timidez que os outros.

A dama de branco aterrissou em terra com um olhar sereno, regado a traços adquiridos pela experiência. Observou a menina ao longe, sem pronunciar uma única palavra, como se esperasse que o primeiro movimento viesse de qualquer outra pessoa que não fosse ela.

— Por favor — Não sabia de onde as palavras vinham, muito menos com que força conseguia as proferir, mas ali, sob o olhar mais reluzente que já vira, Alya acabava por falar tudo aquilo que lhe viesse me mente. —, me diga que tudo isso não passa de um sonho...

A mulher de branco a fitou por mais uns instantes. Um meio sorriso se abriu em seu rosto.

— Temo dizer que não. — A voz da moça, por mais que melodiosa fosse, por mais que lembrasse as músicas que Alya tanto amava, não foi o suficiente para evitar que os olhos da menina marejassem. — Atingida por um carro. O condutor estava embriagado e não parou a tempo mesmo conseguindo enxergar você.

— Então... você é a Morte?

Não conseguiu decifrar a expressão que a dama de branco assumiu em seguida. Talvez algo entre pena e solidariedade.

— Me chame de Enoue.

A garota arqueou as sobrancelhas.

— Não sabia que poderia ter um nome, ou imaginava que poderia ser tão serena assim.

— Tenho vários nomes, mas este é o que melhor me define no momento. A morte só é temida por aqueles que têm muitos arrependimentos em vida.

Alya trocou o peso de um pé para outro. Tornou a observar o campo que se estendia por toda a planície, incerta do que deveria dizer ou fazer. Ceder às lágrimas e implorar por mais uma chance? Aceitar e permitir-se ser levada para onde quer que seja o destino?

— Entre tantas hipóteses e crenças que já escutei sobre o pós-morte, esperava pelo menos um julgamento final sobre ir ao céu ou não.

O sorriso de Enoue se transformou em um misto de presunção e desafio. Alya conseguia reconhecê-lo em qualquer lugar, já o viu milhares de vezes em vida e em pessoas diferentes.

— Você acha que merece ser salva?

A resposta não veio tão rápida quanto gostaria. As memórias lhe vinham em mente como feixes, em instantes pouco duradouros. Analisou cada uma das imagens segurando a vontade de se derramar no mar de emoções que lhe atingia. A infância vivida em sonhos, a maturidade repentina e quebradiça, o despertar tardio. Não viveu como gostaria, mas, em compensação, em algum momento conseguiu tomar as próprias escolhas.

E pensou na garotinha que um dia foi, na imagem que passara tanto tempo visualizando e se perguntando se ela estaria de fato contente. Não parecia ter vivido o suficiente para chegar a alguma conclusão.

O brilho de Enoue ganhou mais intensidade e, como se não fosse possível, seu sorriso se alargou ainda mais.

— Sei muito bem o que quer responder e devo dizer que não concordo.

Alya a analisou de cima a baixo, incrédula. Havia uma resposta certa?

— Há espaço para uma alma amargurada nas estrelas?

— Tomar ciência de seus feitos valem muito mais que achar que merece um lugar de mérito sem observar nenhum de seus atos. O verdadeiro julgamento final é o que você mesma faz em relação a si mesma. No final, apenas dizemos se estamos de acordo ou não.

— Isso não faz sentido nenhum.

— Nunca ninguém conseguiu compreender no começo, mas um dia vai entender. Terá todo o tempo do mundo para isso.

Mais uma vez o olhar de Alya voltou-se para as estrelas. Não deixou de se perguntar sobre os tipos de histórias que elas guardavam, ou sobre como seria ver as pessoas lá de cima. Devaneios que lhe eram mais corriqueiros do que gostaria em vida, mas nunca de fato cogitado que um dia seriam tão reais.

Eles se juntaram a elas, afinal? Reconheceram seus erros e foram perdoados?

— Então poderei me juntar às estrelas, no final das contas? — Ela fitou novamente a dama de branco.

— Você não me parece muito animada. — Enoue franziu o cenho.

— Não sei, é só que... — Não conseguiu conter a voz embargada. — Queria ter tido mais tempo.

— É o que todos sempre querem, da mesma forma como sempre têm algo a dizer para quem eles foram no passado.

— Minhas ações nem de longe foram algo de se orgulhar. Não a maioria delas, pelo menos...

— E precisam?

— Não fiz o que deveria ser feito...

— O maior erro de vocês é acharem que existe um propósito maior que viver. Você fez o melhor que pôde da forma que conhecia e é o que basta.

Alya não percebeu o momento em que se rendeu ao choro, muito menos quando passou a notar a maneira em que as sementes dos dentes-de-leão se espalhavam conforme a ventania. Continuou analisando a dama de branco e toda a compostura presente nEla, como se esperasse pelo momento em que o filho caísse e ralasse o joelho, mas ainda assim pronta para abraçá-lo e dizer que estava tudo bem.

E tornou a reviver cada um dos momentos que a trouxeram até ali, porém se esforçando um pouco mais para se agarrar àqueles que mais a fizeram se sentir tão viva. Surpreendeu-se em perceber haver muito mais do que de fato imaginava, não lembrava de haver tantas assim quando ainda estava viva.

Pequena eu, se você soubesse...

Ela fitou o céu uma última vez, um pouco mais disposta a desbravar sua imensidão um pouco mais de perto.

— Iremos para lá agora?

— Caso não tenha um último pedido...

O sorriso que Alya lançou para Enoue poderia ser quase tão ofuscante quanto os astros.

— Uma última dança?

A julgar pela expressão complacente da Morte, parecia esperar pela proposta.

— Como queira, minha cara.

E assim a garota conduziu a mulher de branco a mais uma de suas coreografias quase descompassadas, mas que ainda assim apresentavam a mesma precisão esquecida há tantos anos. A luminescência dos corpos celestes ganharam força no cosmos. Em algum momento o aperto em seu peito, que a acompanhara durante tanto anos, cessara. Em algum momento, sem perceber, tanto ela quanto Enoue se diluíram em estrelas.

E foi naquele instante, naquele milésimo de segundo, que sua constelação particular tornou a reacender suas luzes e decidiu juntar-se ao universo por toda a eternidade.

Naquele instante, naquele milésimo de segundo, ela se tornou livre.

ÉtoileOnde histórias criam vida. Descubra agora