IV. Dernier Acte

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Ela não foi ao funeral dos pais.

Passadas as horas em que havia ficado no teatro, ela vagava pelas ruas da cidade. Não olhara o celular uma única vez sequer, mas já conseguia imaginar as inúmeras chamadas perdidas de sua tia, ou as dezenas de mensagens não lidas deixadas por todos os outros familiares cujo contato era quase inexistente. Na verdade, não se importou de falar com ninguém desde que a ligaram para dar a notícia do acidente.

Era tudo uma questão de tempo, ela sabia. Até porque nem todos têm o privilégio de sair ileso ao dirigir em uma estrada embriagado durante a noite.

Já fazia anos desde que saiu de casa, desde que havia se cansado de entrar naquela brincadeira, naquele espetáculo mal articulado. No entanto, em seus vinte e oito anos e em suas melhores vestes do conformismo, ela apenas se dispunha a se perder dentro de si enquanto via a vida correr ao seu redor.

Não iria fingir não sentir o gosto amargo que vem em sua boca sempre que o assunto dos pais vinha à tona. Não conseguia, por mais que se esforçasse, esquecer de tudo que lhe foi tirado, muito menos de como fora deixada à mercê da própria sorte quando, em algum momento, decidiram que ela já poderia tomar as decisões por si só, porque acreditavam (ou ela acreditava) que teria enfim entendido qual seria seu papel naquele ato. E mesmo assim teve de ouvi-los sobre o quanto estavam insatisfeitos por ela não se esforçar nem um pouco para conseguir um emprego melhor após finalizar a sua graduação em Administração.

Mas, acima de tudo, ela não esquecera de seu último desentendimento com eles, e não pretendia de forma alguma entrar naquela dança porque a queriam em seu estado mais deplorável.

Os gritos, os objetos revirados, o pranto. Ainda revivia tudo aquilo como se o momento nunca tivesse acabado.

Fora a heroína, no final das contas. A heroína que nunca descobriu seu poder e fugiu para tentar salvar a si mesma.

Ou o que restou dela.

O vento quente da noite abraçava seu ar melancólico. As luzes dos postes pareciam irradiar um brilho ainda maior. A rua deserta onde acabara de entrar parecia contemplar sua solidão. As estrelas não lhe eram muito visíveis, apesar de saber que estavam lá, olhando para ela, tentando consolá-la pelo que não conseguia sentir.

Observar seus arredores não diminuía o aperto que a acompanhava desde o início do dia. As cenas do espetáculo de dança que acabara de presenciar não eram o suficiente para afastar suas memórias mais agridoces.

Naquele milésimo de segundo, desejou estar no planetário onde trabalhava, em um daqueles momentos em que a monotonia como recepcionista lhe permitia uma pausa e explorar todo o local pela enésima vez. Poderia realizar o mesmo trajeto pelo lugar até seus últimos dias, jamais se cansaria. O universo nunca falhava em ajudá-la a se distrair de seus devaneios.

Ela soltou mais um de seus suspiros pesados. Não sabia quantas vezes havia feito aquilo. Queria poder ter pelo menos um único confidente para compartilhar tudo o que havia dentro de si. Não lembrava em que momento se afastou de todas as pessoas que a cercavam, muito menos quando estabeleceu uma distância que julgava ser segura para não mostrar tanto de si ao mundo.

Não percebeu o momento em que simplesmente parou de caminhar em meio à rua e fechou os olhos, tentando resgatar mais uma vez a visão que tivera anos antes, quando tudo ainda não passava de um sonho: ela mesma aos cinco de anos, sem nenhum conhecimento sobre o mundo, com seu sorriso mais sincero, em sua forma mais genuína.

Pequena eu, você não ia gostar nem um pouco da pessoa que nos tornamos. O que faria de diferente se eu lhe confidenciasse nossas piores escolhas?

Já não era mais tão fácil visualizar tudo de uma maneira tão nítida como nos seus dezessete anos, sobretudo ao tentar juntar cada um dos fragmentos restantes depois de seus fantasmas lhe estilhaçarem outra vez. Ainda assim, a criança sorria. Ainda assim, era possível ver a constelação que cintilava em seus olhos.

Por onde tem andado?

Tentou segurar as lágrimas. O aperto no peito se intensificou. Seus pés já não pareciam mais estar tocando em terra firme. A expressão da garotinha permaneceu, mesmo quando sua imagem era intercalada entre as recordações de todas as coisas vivenciadas até ali. Gostaria de poder dizer algo para sua versão mais nova, como gostaria. Mas tinha ciência do quanto uma história se torna intocável depois de escrita e exposta ao mundo.

Já lhe machuquei demais, não é?

Com esse último pensamento, ela respirou fundo e decidiu acompanhar a menina em seu último escape, antes de precisar dar seu ponto final, antes de ter de encarar o mundo da maneira como ele era. Um último ato, uma última dança, seu último espetáculo para as estrelas. Não se importava com a possibilidade de surgir alguém para observá-la, não se importava com os julgamentos.

Era ela e a garotinha novamente, antes de voltar a ser ela e o mundo mais uma vez. A precisão em seus passos já não existia mais, porém, como em tantas outras ocasiões em que se permitiu ser livre, não via grandes empecilhos nisso. Se fosse para dançar conforme as regras da realidade, que pudesse ao menos seguir os próprios preceitos pelo menos uma única vez.

O mundo era o seu palco, a coreografia era suas últimas palavras. Seu corpo ganhava a leveza de uma brisa. A menina sorria. Ela sorria. Dentro de si, os pontos de luz há tanto tempo apagadas em sua constelação pareciam querer retomar sua luminescência com toda a força que conheciam.

Naquela noite, as estrelas que ocupavam o céu se tornaram seu principal público. Contudo, naquela noite, ela não percebeu um brilho ainda mais forte e mais real se aproximando dela. Naquela noite, a última coisa que sentira foi o impacto de algo batendo nela e a lançando para longe dali. Naquela noite, ela não tornara a abrir os olhos.

Não havia mais nada de si.

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