Ruth Alves
Sugo o achocolatado da caixinha menor que minha mão, enquanto balanço as pernas de forma pouco sincronizada - uma ia, voltava e a outra avançava -, interrogo a garota Reis sobre sua antiga vivência, tentando entender as aventuras de uma recifense.
Em contrapartida consigo flagrar sua impaciência, me pergunto se eu seria a razão desse sentimento e mais afundo indago-me se costumo causar tal reação em todos a minha volta.
Talvez eu fosse o perfil de pessoa inconveniente que todos repelem ou torcem para permanecer longe. Me calo repentinamente, ouvindo em seguida o suspiro carregado por alívio da loira, praguejo mentalmente, definitivamente não sou bem vinda aqui, Samara pareceu notar minhas dúvidas e disse de maneira polida:
- Olha, eu de verdade não estou procurando uma amiga ou uma guia, seja lá o que você esteja tentando fazer... - Engulo seco, assentindo demasiadamente. - Quero ficar sozinha, eu e eu. - Faz movimentos repetidos com as mãos, como se estivesse espantando um mosquito irritante.
- Eu acho que... anh, vou... - Tropeço ao descer da mesa enfeitada por desenhos e rabiscos dos alunos. Sem tardar ou tentar explicar algo, apresso os passos para o mais longe que minhas penas possam me direconar.
Samara não queria amigos em Serra dos Cataventos, porque possivelmente já estava repleta dos seus em sua cidade natal, sem espaços para novos. Ou talvez ela não quisesse a minha amizade - o que são duas coisas divergentes.
Depois do fim das aulas, caminho, me concentrando no ruído que meus crocs rosa pastel faz ao chocar-se ao chão, até o hospital público municipal para enfrentar mais um dos infinitos check up.
De toda a odiosa avaliação, a parte mais divertida era jogar conversa fora com a doutora Margot Salmon - que veste um jaleco pálido sem muita particularidade, amarra os cabelos em tranças trabalhadas minuciosamente e sapatos como os meus, cheios de jibbitz fofos.
Seu estetoscópio encosta no centro, entre meus seios, mais direcionado levemente para a esquerda. O objeto é frio, provavelmente devido ao ar condicionado da sala, e sua expressão é neutra enquanto assimila resultados dos meus batimentos cardíacos.
- Está tudo bem? - Pergunto curiosa, tentando não ser tão irritante quanto Samara me fez sentir.
- Ah, sim, sim querida... - Escreve algumas coisas em um caderninho de folhas sem linhas. - Você vai precisar tirar sangue para os novos exames e ficar um tempinho no soro, vai melhorar a tontura e teremos que investigar os motivos do sangramento nasal estar voltando, mesmo depois de trocar os medicamentos.
- Margot? - Chamo instintivamente, recebendo toda sua atenção. - Eu sou uma pessoa chata? - Sussurro, imaginando que nem ao menos ela tenha ouvido.
- Ruth você é adorável! - Exclama de maneira astuta, reflito se a mesma não está apenas omitindo o óbvio para não me magoar. - Uma das adolescentes mais incrível e forte que tive o privilégio de conhecer, nem por um segundo sequer duvide de sua essência, combinado? - Ergue de forma infantil o dedo mindinho, sorrio envergonhada, retribuindo o gesto. - E aqui está um jibbitz de flor para minha melhor paciente, combinou com sua maquiagem. - A médica ajusta o acessório em minha crocs, dando batidinhas gentis na maca. - Vou falar com o enfermeiro Enzo sobre o soro, me espera aqui, por favor. - Assinto.
Vejo-a sair da sala, deixando a porta entreaberta de maneira não proposital, revivo suas palavras positivas sobre mim e concluo que Samara Reis estava errada sobre mim, assim como todos que compactuam com os mesmo pensamentos que ela. Eu sou boa e legal e ninguém pode me dizer o contrário, não enquanto eu estiver me esforçando para ser empática. Reis, tampouco alguém, não podem tirar essa dádiva da minha personalidade.
Ergo o queixo afogada de decisão e autoconfiança, a tempo para ver suas figuras sedentas por confusão passar disparadas pelo corredor. Estanho automaticamente, o que Adela e Ava estão fazendo aqui? E o mais importante de todas as perguntas: Por que estão correndo como se suas vidas dependessem disso?
Sou guiada por uma força maior, a da curiosidade, não que eu me orgulhe disso, porém não é como se fosse possível continuar sentada cheia de perguntas sedentas para serem respondidas.
Pulo da maca desconfortável, vestindo a blusa de botões do uniforme e caminhei na mesma direção que as vi indo, sem parar para analisar como esse ato não condiz com a boa educação que meus pais me deram.
Ava Salmon
Abrimos as duas portas com brutalidade, apressadas e sedentas por explicações. Adela por escolha própria resolve montar guarda perto das janelinhas transparentes que dão visão completa do corredor.
Passeio meus olhos pelas caixas cinzas à medida que deslizo entre elas, abro duas e leio a etiqueta, fechando ao ver que nenhum dos corpos tinham o nome "Tadeu", encontrando apenas após a sétima gaveta aberta. Puxo com tudo, chamando a atenção da minha amiga de lábios grossos e áurea indestrutível, a mesma caminha ao meu encontro tampando sua boca para não emitir um grito agudo que chamaria mais atenção do que naturalmente costumamos chamar.
É uma das visões mais cruéis e macabras que já avistei, o homem mantém-se sem seus olhos, que um dia já foram verdes e brilhosos, marcas de tortura estão pincelada por todo seu tórax e uma marca de serragem encontra-se em seu pescoço gordo.
Visto duas luvas descartáveis que ficam no armário de materiais dos legistas e seguro firmemente uma espátula pequena, decidida a investigar mais de perto, vejo a expressão assustada de Adela, como se me perguntasse escancaradamente se eu realmente teria coragem de fazer o que estou prestes a começar.
Respiro fundo, mentalizando meu objetivo ao tocar as pontas dos dedos no corpo frio e violentado do Troll mais bondoso que um dia já pisou na terra. Reconheço os vestígios de sua coragem, concluo que morreu lutando e isso involuntariamente me tranquiliza, sua força jamais será esquecida entre os vivos.
Viro delicadamente seu corpo pesado e me assusto ao ver o que foi mutilado em seu corpo, deixando-o cair de novo na gaveta de metal, recuo dois passos.
- Que droga, Ava! - Emite irritada. - Faça menos barulho. - Ordena, mas logo para ao deparar-se com minha expressão catatônica. - O que houve? O que viu? - Pergunta preocupada.
- N-não foi um simples assassinato... - Em tese, nós duas já sabiamos disso, afinal com toda aquela conversa entre nossos pais era de se imaginar que tratava-se de algo grande e preocupante. Sean vem ao meu encontro, forçando-me a erguer novamente o corpo, para que as costas de Tadeu fique amostra. Vejo-a tremer dos pés à cabeça e afirmo: - Foi um aviso. Uma notificação de...
- Vingança e morte.
Ficamos ali, caladas e com medo, aposto doze das minhas milhares rochas de neutralização que a imagem grotesca está sendo revivida na consciência de Ade, assim como está na minha. "Suus 'iustrus principium nostrae regressus" acompanhado de um desenho torto, moldado na própria carne do troll. Dois traços, um horizontal com um círculo pequeno do lado direito, enquanto no meio desse há outra linha - dessa vez vertical - acompanhado de um círculo maior em sua ponta. A Sect.
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Refeitas
FantasíaNem sempre tudo foi questão de vida ou morte. Certo ou errado. Felicidade ou tristeza. Lealdade ou trairagem. Condenação ou misericórdia. Houve uma época em que o sol brilhava forte, as raças viviam em harmonia e tudo que era quebrado, também era re...