Solto a chave do Mustang e levo minhas mãos sobre a cabeça. Quando ainda menino, em uma das fugidas do meu colégio para jogar futebol na rua com meus amigos, lembro do Bruno acertando a lança de um portão com nossa bola e ela muchando por causa do belo rasgo que lá ficou. O Bruno subiu raivoso no portão, a pegou ainda enfiada na lança e a jogou longe. O desânimo tomou conta da gente até que meu golden retriever correu atrás do que antes era nossa bola e voltou a chacoalhando, pronto, estava feita a festa e brincamos por minutos com o cachorro cheio de vida, até que em uma das lançadas não percebemos o carro que vinha em nossa direção e Boris meu cão correu para alcançar a bola. Lembro daquele momento pois foi exatamente igual. O aperto no coração, a quentura que sobe da barriga e termina na nuca, as pernas congeladas sem poder se mexer. Vejo o ônibus passando pelo farol vermelho e acertando em cheio o jipe de Íris, destroços voando para todos os lados e seu carro sendo arrastado por uns 10 metros em meio à avenida. Eu vi tudo e não pude fazer nada. Vi o carro de Íris saindo quando o sinal verde se abriu. Vi o ônibus avançando em alta velocidade. Vi o desespero das pessoas que passavam na rua.
- Não não não.- Pego meu celular e ao ligar para emergência minha mão treme, é difícil acreditar, a um minuto estávamos todos juntos e agora posso ter perdido as duas. Chego ao que sobrou do carro e Íris está com o braço pendido para o lado de fora da janela arrebentada do jipe, seu rosto escorado na coluna da porta e eu meio que com medo tento toca - la
- Íris levanta, abra seus olhos, quero vê-los abertos, fale comigo Iris. - Suplico para que esteja consciente, mas seu corpo não responde. Meu coração está rasgado e eu não sei o que fazer. Quando polícia chega estou segurando sua mão, sua pequena mão pálida e sem força.
- Afastasse Rapaz! -Um soldado da Rota me repreende.
- Vou ficar com ela.
- Afastasse agora.- Ele volta a dizer.
- Ela é minha... Ela é minha esposa. - Minto na esperança de poder ficar e quando a ambulância chega os paramédicos permitem que eu fico dentro da área de isolamento. Tiraram Maria antes de Íris e tomaram rumo ao hospital, alguns minutos depois outra ambulância levou Íris. Já me preparava para seguir seu destino quando um policial me entregou os pertences das duas, bolsas, celulares e a carteira de Íris. Chegando ao hospital após ajudar a contatar seus parentes converso com os pais de Maria. Dor, revolta e o sentimento de estar com as mãos amarradas, nos resta confiar nos médicos e em Deus, a pouco falei também com a família de Íris pelo telefone, eles moram em minas gerais, o desespero de sua mãe ao saber da notícia destruiu o pouco da força que eu tinha. Fizeram os preparativos o mais rápido possível e estarão aqui no hospital por volta das 22 horas. Quando chegaram explico como tudo aconteceu e estou aqui desde então esperando notícias das meninas. Meu corpo cansado, minha mente pensando besteira a todo momento, luto contra fantasmas internamente, tento levar esperanças onde minha consciência me diz para esperar o pior. Esse é com certeza um dos piores dias da minha vida, nunca havia presenciado algo tão horrível.Oito de Março.
O dia está nublado e já se passam das 15:00 horas, o som que ouço é de soluços e desespero. O sentimento de raiva enche meu coração, a vontade de gritar por justiça explode em meu peito. Não aguento e lágrimas escorrem de meus olhos. Um choro tímido por fora, mas que por dentro me destrói.
Aos meus pés sendo posicionada em seu local de descanso eterno, Maria.Nove de Março.
19:00 horas, Íris vai passar por uma cirurgia complicada, estou na sala de espera junto à sua família, seu pai passa a todos tranquilidade, sempre positivo tenta acalmar seus entes querido enquanto seu próprio coração se desespera, sua esposa dona Fátima não diz uma palavra, mas todos percebemos no olhar suas expressões de desespero e ao segurar seu terço com força, quase o quebrando, ela conversa com Deus. A irmã também está junto a nós, sempre atenta ao vai e vem dos médicos parece ser a mais anciosa por novidades.
Roberta está com nós, a garota que encontrei no prédio de Íris, lembro bem de seu rosto ao abrir o elevador. O tempo brinca caprichosamente se arrastando em meio a segunda feira.Dez de Março.
Depois de oito horas de cirurgia com muitas complicações Íris está fora de perigo, porém ainda está em coma, hoje nos permitiram vê-la e estou com seus pais, Nina também veio visita-lá. Por de baixo da roupa da para se perceber curativos em várias partes do corpo, sua expressão está pálida, fraca e inchada ela brinca com minha memória dizendo que a pessoa que está a minha frente não é a Íris que conheci. Nina olha assustada para sua amiga tão debilitada na cama.
Ao se dirigir a minha pessoas tenta entender o que eu faço junto a eles no hospital, explico para ela que presenciei o acidente porque estava junto de Íris quando tudo aconteceu.Quinze de Março.
Íris ainda dorme, seus médicos não sabem dizer ao certo se e quando irá acordar. Os pais de Íris precisam voltar para minas, mas sua irmã ficou por mais uma semana, como venho todos os dias no horário de visitas fiquei encarregado de avisa-los caso o quadro de saúde se altere. Quando ela estiver em condições de ser transferida, vão levar a Íris para Minas Gerais.
Dezesseis de Março.
Conheço Lucas, um ex-namorado de Íris, resolvo deixa-los a sós e vou embora. A caminho de casa Doda me liga e passo então no Veloso, lá se faz as melhores coxinhas que já provei. Ao chegar eles estão sentados em uma mesa dentro do boteco olhando o celular e dando risadas.Estico o pescoço curioso e me deparo com fotos de sexta, dia da festa da Bia. Nossa realmente nós nos divertimos, um mais atrapalhado que o outro, as meninas não ficavam longe, insanas, causavam de igual para pior. No meio das fotos surge algumas de Clara me beijando, estávamos no quarto ela já sem sutiã, o uivo de geral toma o estabelecimento, seguido de tapinhas em minhas costas.
- Que Merda é essa Wagner? - Pergunto em tom raivoso.
- Pelo que eu vejo é você dando um trato na gostosa da Clara. - Responde Wagner ao tomar o celular da mão de Doda.- Cara você está um porre depois que começou a sair com essa tal de Íris.
- Sair Wagner? A garota está inconsciente no hospital. Olha trate de apagar essa porcaria. A Clara é boa gente e estavamos muito bêbados, ela não merece ninguém se masturbando ao olhar suas fotos.- empurro a cadeira do boteco e vou para casa, estou cansado, desanimado, preciso dormir.Dezessete de Março.
Estou sozinho com Íris pela primeira vez em seu quarto. Seu rosto ainda inchado e feridas cicatrizando em seus bracos. Como eu gostaria de ver seus olhos verdes, como queria ver aquele sorriso lindo e contagiante, dobro meus joelhos e me lembro de como é conversar com Deus.
Dezoito de Março.
Estou segurando as pequenas mãos de Íris, resolvo conversar com ela. Conto a ela o quanto meu coração dói, o quanto ele está pequeno diante de tudo que vem acontecendo, que Deus não foi justo em mostrar o sentimento que tenho por ela ao mesmo tempo em que amarra minhas mãos.
Dezenove de Março.
Começo a ler para Íris e como primeira leitura, Vinicius de Moraes.
"De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto.
Que mesmo em face do maior encanto dele se encante mais meu pensamento.Quero vivê-lo em cada vão momento.
E em louvor hei de espalhar meu canto.
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem amaEu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama.
Mas que seja infinito enquanto dure."Soneto da Fidelidade
(Vinícius de Moraes)
Gosto de pensar que Íris está me ouvindo e compreendendo, vejo um sorriso tímido em seu rosto.
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São as águas de Março.
RomanceA mesma envolvente história contada de forma diferente pelos seus protagonistas, Iris e Pedro. Diferentes pontos de vistas lhe fazem entender que é errado julgar antes de conhecer todos os lados de uma situação. Apaixone-se por Pedro e Iris, descubr...