Como se Ana já não houvesse saído daquele sótão convencida o suficiente de que precisava dar fim àquilo – porque tinha gostado demais, estado perto demais de fazer algo absurdo –, a aula seguinte de literatura com o 3º ano serviu para deixar bem claro que não havia lugar para ela no mundo de Vítor.
Ele estava se mantendo afastado, aparentando uma concentração à apostila de exercícios que se mostrava falsa em razão do semblante fechado, e Ana permaneceu em sua mesa ao invés de circular pela sala como costumava fazer, conversando com os alunos e sanando dúvidas sobre o conteúdo. Enquanto encarava o bigode proeminente de Aluísio de Azevedo na imagem impressa na apostila, aberta no capítulo de literatura realista, Ana se perguntou o quanto Vítor tinha ficado magoado com ela e se essa mágoa um dia passaria. Cogitou que, se não passasse, acabaria sendo mais fácil para ela, pois não precisaria rejeitá-lo outra vez.
A ideia transpassou-a feito um punhal.
Por que continuava sendo tão doloroso?
Sua atenção foi atraída para as duas alunas que cochichavam na primeira fileira. Os alunos que habitualmente se sentavam atrás estavam mais afastados, de modo que a única pessoa por perto e que poderia escutar algo do que diziam era Ana. Contudo, ela estava cansada de saber que os alunos não consideravam os professores como seres humanos comuns dotados de personalidade e de curiosidade, julgando-os totalmente desinteressados de assuntos mundanos. Para eles, os professores eram mais como criaturas desagradáveis encarregadas de reprimi-los e puni-los com trabalhos e provas.
- Por que você não diz a ele na festa? – Manuela estava perguntando.
- O Marcelo disse que ele não vai. – Bianca resmungou. – E o que eu poderia falar?
- A verdade! Você é apaixonada por ele desde o 8º ano.
- Ah, claro! "Então, Vítor, eu sou louca por você. Que tal me beijar agora?"
- Aposto que ele ficaria tão chocado que te beijaria mesmo.
As duas riram baixinho e Ana voltou a encarar Aluísio de Azevedo. Seu rosto queimava e o coração batia em um ritmo acelerado, não pelo constrangimento de ter escutado aquela confissão, mas pela ideia de que Vítor poderia se apaixonar por uma garota da sua idade e viver um relacionamento normal com ela. Era o que se esperava que acontecesse, não era? Conhecer e namorar uma garota que pudesse apresentar à família e aos amigos, ir a festas com ela, caminhar de mãos dadas em lugares públicos.
Ana não tinha espaço naquela realidade – nunca teria. De repente, mais forte do que o ciúme, assolou-a a culpa por estar privando Vítor daquelas coisas, de aproveitar a vida como um adolescente normal. Talvez, ao deixar transparecer seus sentimentos, ela estivesse dando a ele esperanças que jamais se concretizariam, incentivando-o a acreditar em uma ilusão. O que poderia ter sido apenas uma aventura passageira na mente de um garoto de dezessete anos, tinha se tornado, por sua culpa e irresponsabilidade, uma decepção que agora o machucava.
Quão cruel e egoísta Ana vinha sendo naquela história?
Ela só percebeu que estava encarando Vítor de um modo estranho quando tomou consciência de que ele também a fitava. Seu semblante sombrio havia se desfeito em algum momento, porque agora ele a olhava como se ela fosse uma incógnita. E estava vindo na sua direção. Ana baixou os olhos para a apostila de literatura e fingiu ignorar sua presença quando ele se agachou ao lado de sua mesa.
- O que aconteceu? – ele indagou baixinho.
- Nada.
Ana sentiu que as duas garotas estavam bem atentas àquela cena, ansiosas pela proximidade de Vítor, e compreendeu que precisava ser firme, até mesmo rude, caso necessário. Aquela era sua oportunidade para consertar as coisas e colocar tudo de volta nos trilhos, para redimir-se de seu egoísmo, para devolver a Vítor todas as chances que ele estava perdendo ao desejar relacionar-se com ela.
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Ruído
RomanceAna é a nova professora de literatura da escola. Vítor, aluno do último ano do Ensino Médio. Ela tem 27 anos e ele 17. Entre eles, além das distâncias mais óbvias, impõem-se todo um mundo de regras, valores e preconceitos. Nada disso impede, contudo...