Mais tarde naquela semana, Ana estava bebericando seu café durante o intervalo das aulas da manhã na sala dos professores, repassando mentalmente os itens de supermercado que precisaria comprar na volta para casa, quando as demais professoras na sala começaram a falar sobre filhos e sobre como a vida mudava depois de tê-los, e Ana sentiu sua atenção atraída na direção da conversa.
- Eu não sinto esse tal de chamado materno. – disse uma das professoras mais jovens.
- Mas eu também não sentia! – disse outra. – E hoje tenho dois filhos.
- É algo que acontece quando você menos espera. – comentou uma delas, sorrindo.
- A gente passa por cada perrengue. – riu a que tinha dois filhos. – Mas é indescritível. Ser mãe foi uma das melhores coisas que já aconteceram na minha vida.
Ana desviou o olhar para a rua através da ampla janela. Nunca tinha sentido muita vontade de ter filhos, mas agora pensou que não teria aquela chance com o cara por quem estava apaixonada. Se eles, por um milagre, conseguissem ficar juntos, ela já seria muito velha para ser mãe quando ele tivesse idade e responsabilidade o suficiente para ser pai – considerando que, em algum ponto do futuro, ambos quisessem aquilo. Ana constatou que aquela seria mais uma coisa da qual Vítor estaria abrindo mão e a ideia encheu-a de tristeza.
***
Na aula de literatura seguinte, Ana falou tanto e passou tantos exercícios aos alunos que, ao fim do período, estavam todos exauridos. Aquela, contudo, tinha sido a intenção – anular todas as possibilidades que Vítor pudesse ter de se aproximar e de tocar em assuntos para os quais ela ainda não estava pronta. Havia coisas demais na sua cabeça, conflitos demais, e tudo o que Ana precisava era de um pouco de tempo para pensar.
Quando encontrava o olhar dele, percebia o vinco de incompreensão entre as sobrancelhas, o modo concentrado como ele parecia estar canalizando todas as suas habilidades a fim de descobrir o que havia de errado com ela dessa vez. Então Ana fingia que não o tinha visto e continuava passando de classe em classe para auxiliar os alunos nas tarefas, sabendo que precisava manter-se em movimento e rodeada pelo maior número de pessoas possível.
Ela praticamente fugiu correndo da sala de aula quando a professora do período seguinte assomou à porta para substituí-la. Receava que Vítor fosse atrás dela e só diminuiu o passo quando chegou à sala do 8º ano, onde cumpriria o próximo período. Estava tão envergonhada pela atitude covarde quanto aliviada por a estratégia ter dado certo.
***
Na noite de sexta-feira, enquanto assistia pela vigésima vez ao filme Orgulho e Preconceito, Ana resgatou de baixo de um travesseiro o celular que tocava. Contrariada, foi obrigada a parar o filme justo na parte em que Mr. Darcy confessa que ama "ardentemente" Elizabeth Bennet e atendeu a chamada do número desconhecido. Pensou que, se fosse o maldito telemarketing, o infeliz do outro lado da linha ouviria uma torrente de insultos que só cessaria quando desligassem na sua cara.
Mas não era o telemarketing.
- Ahá! Encontrei você!
Ana reconheceu imediatamente a voz de Vítor, embora ela lhe parecesse um tanto alterada. Seu coração começou a saltar dentro do peito e ela sentiu ímpetos de gritar no mesmo tom que ele.
- Vítor?! O que está fazendo?!
- Bebendo! – risadas ao fundo. – Você anda me tratando tão mal que precisei espairecer.
- Vá para casa! – o pavor dominou-a. – E quem está aí? O que você disse a eles?
- Não se preocupe. – ele riu, e então baixou o tom de voz a um sussurro. – Nosso segredo está bem guardado.
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Ruído
RomanceAna é a nova professora de literatura da escola. Vítor, aluno do último ano do Ensino Médio. Ela tem 27 anos e ele 17. Entre eles, além das distâncias mais óbvias, impõem-se todo um mundo de regras, valores e preconceitos. Nada disso impede, contudo...