Capítulo 20

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Tinha começado a chover quando Ana sentou-se à mesa da cozinha com uma caneca de café forte entre as mãos. Enfim o calor abafado do dia tinha se rendido à uma chuva rápida, mas pesada, de verão. Os ponteiros do relógio sobre a bancada da cozinha marcavam quase uma da madrugada – tão mais cedo do que ela pretendia ter voltado para casa – e seu rosto ainda estava borrado pela maquiagem escura dos olhos que havia escorrido em razão do quanto ela tinha chorado desde que saíra do ginásio. As sandálias permaneciam jogadas de qualquer jeito perto da porta, mas Ana ainda usava o vestido da festa.

Tudo tinha por fim desmoronado – no último instante, por uma ironia de mau gosto. Se, por algum milagre, não tivesse ficado absolutamente claro para todos naquela festa de formatura que Ana e Vítor estavam envolvidos em uma relação que ia muito além do que era permitido dentro de uma escola, ela não poderia escapar do fato de que havia batido em um aluno. Sua mão ainda parecia queimar e, afinal, o gosto amargo do arrependimento não tinha sido suplantado pelo do café.

Ela havia batido em Vítor, na frente de todo mundo. Tinha compreendido o que acontecera no momento em que viu o garoto do 3º ano caído e aquela sombra nos olhos de Vítor que lhe causou um calafrio, apesar da noite quente. Tinha percebido o modo como ele empurrou Lucas para longe quando este tentou trazer-lhe de volta à razão, como se não reconhecesse mais ninguém. Tinha reparado em como as demais pessoas recuavam, chocadas, pressentindo, assim como ela, que aquilo acabaria de um jeito muito ruim. Tinha entendido que, àquela altura, as máscaras já não existiam mais e que agora só ela seria capaz de colocar um ponto final em uma situação que despencava perigosamente ladeira abaixo.

Mas aquilo havia doído tanto, havia lhe custado tanto... E Ana deixou escapar um soluço no mesmo instante em que a porta se abriu e Vítor passou por ela, afobado e com os cabelos levemente molhados da chuva. Ana não pôde evitar perceber os respingos de sangue na camisa branca que ele vestia, um punho manchado de vermelho, e estremecer. Não conseguia decidir se estava brava ou decepcionada com Vítor pelo que ele havia feito, apesar de ter prometido que nunca mais agiria daquele modo, se estava arrependida de ter ido àquela festa, sabendo que muito poderia dar errado, se estava triste pelo garoto que tinha se machucado, se estava com medo das consequências que viriam à galope. Talvez fosse um pouco de tudo, misturado ao desespero do momento.

Ana apenas o encarou enquanto Vítor atravessou a sala para ajoelhar-se diante dela. Ele agarrou-se à sua cintura e deitou a cabeça sobre as pernas dela, a respiração quente e entrecortada contra a pele de Ana. O que ela deveria fazer? Sentia-se esgotada, incapaz de qualquer raciocínio coerente, de uma decisão que parecesse correta. Pensava que tudo aquilo era muito injusto, que desejar estar ao lado da pessoa que amava não poderia ser algo tão criminoso, quando não estavam prejudicando ninguém ou agindo de má fé, mas então por que ela tinha a sensação de que estavam ambos fadados ao fracasso?

Sem se dar conta de que estava chorando outra vez, Ana passou os braços gentilmente sobre Vítor e acariciou seus cabelos úmidos. Tocá-lo era reconfortante, apesar daquela situação desastrosa.

- Não me deixe. – ele pediu em um murmúrio, ainda sem olhá-la. – Por favor.

Ana tinha cogitado aquela ideia? Desde que cedera ao que sentia por ele, ela tinha considerado terminar aquele relacionamento como uma possibilidade real? E, se sim, teria forças para tanto? Imaginar-se sozinha outra vez em um mundo em que Vítor não existisse mais atravessou algo gelado em seu peito e Ana choramingou baixinho, experimentando aquela dor.

Ela não sabia o que pensar, muito menos o que dizer, então apenas continuou acariciando-o com dedos trêmulos, as lágrimas rolando pelo rosto.

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