(Diante do Castelo de Gloucester. Entram Kent e o mordomo Osvaldo, cada um por um lado.)
Osvaldo: Bom dia, amigo; pertences a esta casa?
Kent: Pertenço.
Osvaldo: Onde podemos botar nossos cavalos?
Kent: No pântano.
Osvaldo: Por favor, me diz, bom amigo.
Kent: Eu não sou teu amigo.
Osvaldo: Pois então também não sou teu.
Kent: Se eu te pegasse ali no curral eu te faria meu.
Osvaldo: Por que me tratas assim? Eu nem te conheço.
Kent: Mas eu te conheço, camarada.
Osvaldo: Por quem você me toma?
Kent: Por um canalha, um patife, um comedor de restos; um velhaco arrogante, estúpido, indigente, apenas com três roupas, não mais de cem libras e meias fedorentas, um filho da puta covarde, sem sangue no fígado, que foge da luta e se queixa à justiça; trapaceiro afeminado e sabujo. Um escravo que herdou apenas um baú, que presta qualquer serviço numa alcova, um alcoviteiro; no fim, uma mistura de canalha, mendigo, covarde, rufião, filho e herdeiro de uma cadela bastarda; a quem eu espancarei até que estoure em berros, se negar a menor sílaba destes títulos.
Osvaldo: Mas que monstruoso indivíduo tu és, para ultrajar de tal forma uma pessoa que não conheces e não te conhece!
Kent: E que lacaio de cara de bronze tu és para negar que me conheces? Há dois dias atrás não te joguei no chão de pernas para o ar e te surrei diante do Rei? (Puxa a espada.) Desembainha, velhaco! pois, embora seja noite, a lua brilha; e vou fazer de ti uma papa ao clarão da lua. Saca da espada, filho da puta, nojento podabarbas – em guarda!
Osvaldo: Vai embora; não tenho nada a tratar contigo.
Kent: Saca da espada, canalha; vieste trazer cartas contra o Rei e estás do lado da boneca Vaidade contra a realeza do pai dela. Tira essa espada, escroque, ou tuas patas viram picadinho. Desembainha, patife, e enfrenta a luta.
Osvaldo: Socorro aí! Assassino! Socorro!
Kent: Defende-te, escravo! Em guarda, miserável. Não fujas não, mais que escravo – golpeia, vamos! (Bate em Osvaldo.)
Osvaldo: Alguém aí, socorro! Assassino! Assassino! (Entra Edmundo, com a espada desembainhada, seguido de Cornualha, Regana, Gloucester e criados.)
Edmundo: O que é que foi? Que aconteceu? Solta! (Separa os dois.)
Kent: A vez agora é tua, bonito patrãozinho; faz favor. Vem que eu vou te ensinar o primeiro gosto de sangue; avança, patrãozinho.
Gloucester: Espadas? Armas? O que é que está acontecendo aqui?
Cornualha: Parem com isso, paz – se têm amor à vida. Quem der só mais um golpe é um homem morto. Que aconteceu?
Regana: São os mensageiros do Rei e de nossa irmã.
Cornualha: Qual é a divergência entre vocês? Falem.
Osvaldo: Eu mal posso respirar, meu senhor.
Kent: Não admira, depois de exercitar tanto a tua coragem. Canalha covarde, a natureza te renega; foi um alfaiate quem te fez?
Cornualha: És um indivíduo estranho; um alfaiate faz um homem?
Kent: Um alfaiate, senhor; um escultor ou um pintor não poderiam tê-lo feito assim tão mal, mesmo que fossem simples aprendizes.