CENA VI

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(Aposento numa granja próxima ao castelo de Gloucester. Entram Kent e Gloucester.)

Gloucester: Aqui se está melhor do que ao ar livre; aceite de bom grado. Procurarei tornar o lugar mais confortável em tudo que puder. Não ficarei longe muito tempo.

Kent: Toda a força de sua razão cedeu ao desespero. Que os deuses recompensem a vossa bondade. (Sai Gloucester. Entram Lear, Edgar e o Bobo.)

Edgar: O demônio Frateretto me chama pra dizer que Nero é um pescador no Lago das Trevas. Reza, pobre de espírito, e cuidado com o demônio imundo.

Bobo: Por favor, titio, me diz: um louco é um nobre ou um plebeu?

Lear: Um Rei, um Rei.

Bobo: Não é não; é um plebeu que tem um filho nobre; pois é um plebeu louco quem faz o filho mais nobre do que ele.

Lear: Ah, ter mil diabos com espetos em brasa caindo sobre elas, sibilando...

Edgar: O espírito imundo morde minhas costas...

Bobo: Louco é quem confia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz, e nas juras de uma prostituta.

Lear: Está decidido; vou julgá-las agora mesmo em tribunal. (Para Edgar.) – Vem, senta aqui, sapientíssimo juiz. (Ao Bobo.) – E tu também, sábio senhor, senta-te aqui. E quanto a ti, elas – raposas!

Edgar: Olhem onde ela se pôs. E que brilho no olhar! Deseja um olhar que a admire, mesmo no tribunal, senhora?

Cruza o arroio e vem pra mim, Bessy!

Bobo: Seu barco está indo ao fundo

Mas Bessy não diz ao mundo

Por que não vem para ti.

Edgar: O demônio imundo assombra o pobre Tom na voz de um rouxinol. O demônio Hoppedance grita na pança de Tom exigindo dois arenques brancos. Não rosna assim, anjo negro; não tenho comida para te dar.

Kent: Como está o senhor? Não fique assim tão espantado; não deseja deitar-se um pouco naquelas almofadas?

Lear: Primeiro devemos julgá-las. Façam entrar as testemunhas. (A Edgar.) – Tu, juiz togado, toma teu posto. (Ao Bobo.) – E tu, seu colega na igualdade da lei, senta a seu lado. (A Kent.) – E o senhor aí do júri, no seu lugar.

Edgar: Procedamos com justiça.

Dormes ou velas, lindo pastor?

Tuas ovelhas estão no trigal

E basta um som de tua bela boca

Que não lhes ocorre nada de mal.

Ron, ron! Todo gato é pardo.

Lear: Julguem esta primeiro; é Goneril. Juro, diante desta honorável assembléia, que essa aí expulsou o pai de casa a pontapés.

Bobo: Aproxime-se, senhora. Seu nome é Goneril?

Lear: Não o pode negar.

Bobo: Queira desculpar, pensei que fosse um banco.

Lear: E aqui está a outra, cujo olhar perverso indica de que estofo é o seu coração. Prendam-na aí! Armas, armas, espada! Fogo! Até aqui corrupção! Falso juiz, por que deixou que ela escapasse?

Edgar: Abençoados os teus cinco sentidos!

Kent: Oh, piedade! Senhor, onde está a paciência de que tão freqüentemente te gabavas?

Edgar: (À parte.) As minhas lágrimas começam com tanta força a me mostrar do lado dele que podem revelar o meu disfarce.

Lear: Os cachorrinhos e a matilha toda, Bandeja, Branco e Namorado – estão vendo? – ladram atrás de mim.

Edgar: Tom atira a própria cabeça em cima deles. Fora daqui, vira-latas.

Com focinho preto ou rosa

E mordida venenosa,

Mastim, mestiço e lebreiro,

Galgo, de fila ou rafeiro,

Rabo curto ou bem comprido

Jogo em cima minha cabeça

Lhes tiro uivo e gemido

Té que a matilha obedeça.

Brrrr! Brrrrr! Brrrrr!

Do, dê, dô, dá, Eia! Vamos em marcha para as festas, para as feiras e para as vilas de mercado. Pobre Tom, o teu corno está vazio.

Lear: Façam agora a autópsia em Regana. Examinem que coisa germina em seu coração. A natureza terá uma razão para criar corações tão duros quanto este? (Para Edgar.) – E o senhor, considere-se incluído entre meus cem cavaleiros; só não me agrada o corte de suas vestimentas. Dirá, naturalmente, que são modas orientais; mas vamos trocá-las.

Kent: Agora, meu bom senhor, deite-se aí e descanse um pouco.

Lear: Não façam barulho! Não façam barulho! Fechem as cortinas. Assim. Assim. Cearemos de manhã bem cedo. Assim. Assim. Assim. (Entra Gloucester.)

Bobo: E eu irei para a cama ao meio-dia.

Gloucester: Vem aqui, amigo; onde está o Rei, meu amo?

Kent: Aqui, senhor, mas não o incomodemos; ele perdeu a razão.

Gloucester: Bom amigo, eu lhe peço, levanta-o em teus braços. Surpreendi uma trama de morte contra ele. Tenho aí fora uma liteira pronta. Coloca-o lá dentro e leva-o para Dover, amigo. Ali encontrarão boa acolhida e devida proteção. Pega teu amo. Se demorarem mais meia hora, a vida dele, a tua e a de todos decididos a defendê-lo estarão irremediavelmente perdidas. Levanta-o, levanta-o, e segue-me. Vou te conduzir rapidamente a um lugar onde há provisões fundamentais para a viagem.

Kent: Dorme a natureza sucumbida. Esse repouso poderá ser um bálsamo para os teus nervos esgotados, os quais, sem circunstâncias favoráveis, não terão mais cura. (Ao Bobo.) – Vamos, ajuda a carregar teu amo. Não fica aí para trás.

Gloucester: Andem, andem! Vamos todos embora! (Saem todos, menos Edgar.)

Edgar: Ao ver nossos maiores com a mesma dor

Nossas misérias perdem o seu valor

Quem sofre sozinho esquece suas raízes

Não lembra mais fatos nem tempos felizes

Quando a dor tem irmãos e a angústia amigos

A alma nem sente inúmeros castigos

A dor já não me dói, por não ser singular

O mesmo que me curva faz o Rei dobrar

A ele, as filhas, a mim – o pai. É, Tom, vai embora!

Observa o que acontece, e só volta na hora

Em que a infame calúnia, o mal nefando

Tu destruas com os fatos, te reabilitando.

Aconteça o que aconteça esta noite – desde que o Rei se salve! Esconde-te! Esconde-te! (Sai.)

Rei Lear (1606)Onde histórias criam vida. Descubra agora