(Acampamento francês, perto de Dover. Entram Cordélia, Kent, o médico e o figaldo.)
Cordélia: Ó bondoso Kent, quanto precisarei viver e fazer para pagar tua bondade? Minha vida será curta demais e muito pouco tudo o que eu fizer.
Kent: Seu reconhecimento, senhora, já é paga excessiva. Tudo que relatei é a mais pura verdade; não tirei nem botei – é só o que aconteceu.
Cordélia: Veste uma roupa melhor. Esse traje traz memórias tristes. Eu te peço trocá-lo.
Kent: Perdão, boa senhora, ser reconhecido agora estragaria meu plano. Peço-lhe pois que não me reconheça até que o tempo e eu julguemos conveniente.
Cordélia: Então assim será, meu bom senhor. (Ao médico.) Como está o Rei?
Médico: Ainda dorme, senhora.
Cordélia: Ó deuses piedosos, fechai essa ferida enorme aberta em sua alma violentada. Restabelecei a harmonia na cabeça delirante deste pai transformado em criança.
Médico: Vossa Majestade gostaria que despertássemos o Rei? Já dormiu bastante.
Cordélia: Oriente-se por sua ciência e proceda segundo a conclusão que achar melhor. Ele está bem arrumado? (Entra Lear numa cadeira, transportado por criados.)
Fidalgo: Pronto, senhora; durante o sono profundo nós lhe pusemos roupas novas.
Médico: Fique perto de nós quando o acordarmos, senhora, por favor. Não tenho dúvidas de que está tranqüilo.
Cordélia: Muito bem. (Música.)
Médico: Por favor, aproximem-se. Mais alto, a música.
Cordélia: Ó, querido pai! Que a tua cura dependa do remédio de meus lábios; e este beijo repare os violentos ultrajes que minhas irmãs inflingiram à tua figura venerável.
Kent: Boa e amada princesa!
Cordélia: Mesmo que não fosses pai delas, esses cabelos brancos deveriam inspirar-lhes mais compaixão. Esse rosto merecia ser exposto à guerra dos ventos? Enfrentar o ribombo profundo e aterrador de trovões relampejantes? Ficar debaixo da mais terrível e rápida descarga de raios fulgurantes, que ziguezagueiam no céu; vigiando, pobre sentinela perdida, protegido apenas por capacete tão frágil? Numa noite assim até o cão de meu inimigo poderia se abrigar em minha lareira mesmo que tivesse me mordido. Mas tu, meu pobre pai, tiveste que te confundir com porcos e vagabundos famintos, disputando com eles um pouco de palha apodrecida. Ai de mim! Ai de mim! É um milagre que tua vida e tua razão não tenham terminado juntas. Ele acorda. Fala com ele.
Médico: Senhora, falai vós. É o mais indicado.
Cordélia: Como se sente o meu real senhor? Como passa Vossa Majestade?
Lear: Fizeste muito mal em me tirar da tumba. És uma alma beatificada; mas eu estou no inferno, amarrado a uma roda de fogo e minhas próprias lágrimas escaldam como se fossem chumbo derretido.
Cordélia: Senhor, me reconhece?
Lear: És um espírito, eu sei; quando morreste?
Cordélia: Ainda, ainda: tão longe ainda.
Médico: Não está bem desperto; deixemo-lo sozinho um certo tempo.
Lear: Onde é que eu estive? Onde é que eu estou? É dia claro? Estou muito confuso. Morreria de pena se visse outra pessoa neste estado. Não sei o que dizer. Não juraria que estas mãos são minhas. Vejamos: sinto a ponta do alfinete. Gostaria de estar certo da minha situação.
Cordélia: Oh, olha para mim, senhor, e levanta tua mão para abençoar-me. Não deves te ajoelhar.
Lear: Por favor, não zombes de mim. Sou um velho idiota com oitenta e tantos anos, nem uma hora a mais nem uma hora a menos e, para ser franco, receio não estar com o juízo perfeito. Acho que deveria conhecer a senhora, e esse senhor também. Mas estou em dúvida, porque ignoro totalmente que lugar é este; por mais que faça não consigo lembrar-me destes trajes, nem onde passei a última noite. Não riam de mim; mas, tão certo quanto eu ser um homem, esta senhora é Cordélia, minha filha.
Cordélia: Sou sim! Sou mesmo!
Lear: Tuas lágrimas são úmidas? Sim, são mesmo. Não chores, por favor. Tens veneno para mim? eu bebo. Eu sei que tu não me amas... porque... tuas duas irmãs, eu bem me lembro, me maltrataram muito. Tu tens um motivo, elas não tinham.
Cordélia: Motivo algum. Motivo algum.
Lear: Estou na França?
Kent: Em vosso próprio reino, Senhor.
Lear: Não me enganei.
Médico: Ficai tranqüila, minha senhora... O acesso de furor já terminou: mas ainda é perigoso fazê-lo lembrar de coisas do passado. Aconselhai-o a ir para dentro. Não deve ser perturbado até recuperar toda a tranqüilidade.
Cordélia: Gostaria Vossa Alteza de passear um pouco?
Lear: Tens de ter paciência comigo. Peço só uma coisa; esquece e perdoa. Sou velho e louco. (Saem Lear, Cordélia, o médico e os servidores.)
Fidalgo: Foi confirmado, senhor, que o duque de Cornualha morreu dessa maneira?
Kent: Exatamente, senhor.
Fidalgo: E quem ficou à frente do seu povo?
Kent: Dizem que Edmundo, o filho bastardo de Gloucester.
Fidalgo: Dizem também que Edgar, o seu filho banido, está com o conde de Kent, na Germânia.
Kent: Ah, mas dizem tanta coisa! É tempo de tomarmos decisões. As tropas do reino se aproximam bem depressa.
Fidalgo: O encontro decisivo promete ser sangrento. Passe bem, meu senhor. (Sai.)
Kent: E aqui eu jogo tudo
Para o bem e para o mal,
Esta batalha é um ponto,
Talvez meu ponto final. (Sai.)
Fim do quarto ato