XXIII- Muitas verdades

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O vento que sopra lá fora, tem ficado cada vez mais frio e monótono. Mesmo a paisagem por aqui já obter este ar, para mim, não faz a menor diferença. Estamos beirando o inverno, mas o Rio não faz o frio que outro lugar faria. Lá fora, com certeza, em pleno outono, as pessoas continuam indo à praia, continuam rindo e se divertindo. Eu estou em desolação. Já fazem 318 dias que estou aqui, e duas semanas que eu não converso muito com ninguém, que não saio muito no jardim da clínica. Judite está preocupada, ela insiste que eu fale com minha tia. Não posso falar com ela, até resolver logo minha situação. Se tem algo que aprendi, é que as pessoas não tomam uma atitude, se nós não agirmos para que tal ocorra. Cansei de ser boa demais, de amar demais, sendo que nada fazem de bom para mim, ou me amam de verdade. Minha mãe adotiva muito me decepcionou. Essa marca eu levarei para sempre.

A verdade é infinita e múltipla. Ela é abstrata, e cada um possui a sua. Eu acredito que exista uma verdade para cada coisa. A morte é uma delas. A morte quebra os infinitos que acreditamos existir. Passamos boa parte de nossas vidas, acreditando que tal pessoa nunca morreria, mas um dia, ela morre. O mesmo se dá com os sentimentos, com as lembranças, e os dias bons. Eles morrem. Dão lugar a outras coisas. As coisas se transformam, quando menos esperamos. Estou aproveitando o tempo para refletir e pensar, e não mais jogar conversa fora no jardim. Tento não fraquejar diante da possibilidade de me livrar deste lugar. Agora que minha mãe morreu, não faz sentido eu permanecer na clínica. Ela está longe de mim, e eu dela. Desejo muito que encontrem os meus documentos. Sem eles, eu não posso sair daqui. Mas vamos ao que interessa: os fatos que se seguiram depois do último evento.

Depois que saí do hospital e voltei para a clínica, eu me afastei muito da minha rotina. Não sinto muita fome, e as enfermeiras me forçam a comer. Tem dias que eu não quero sair da cama. Quando eu saio do controle, nem eu sei o que está acontecendo comigo, e me dão algum remédio para me acalmar. Pelo menos, eu não tenho precisado de soníferos, sendo que a coisa que mais gosto de fazer, é dormir. Tenho conversado muito pouco com Maggie e Vera. Evito Thierry e Adrian. Fiquei uma semana toda pensando em tudo o que me aconteceu. Eu devia algo muito precioso a Thi: a verdade. Agora eu posso sentir como é ruim ficar sem saber a verdade. Tenho medo que Thierry se desole também, mas eu não poderia deixar de dizer a verdade. Detesto que façam aos outros aquilo que não gosto. Na semana passada, eu fui ao jardim, e o chamei para conversarmos. Thi está preocupado comigo, e foi muito ansioso. Pedi para Maggie manter os outros amigos longe. Assim que ele chegou no banquinho onde estava sentado, sob os olhos das enfermeiras- para evitar qualquer tipo de coisa entre a gente- abriu um grande sorriso. Eu vi que ele estava nervoso. Não sorri, não disse muita coisa. Dei um lápis e um papel na mão dele, e pedi para sentar.

"- Quero que escreva aí tudo o que quiser falar. Não quero que escreva em minhas costas mais."

E ele, movimentando o lápis no papel, escreveu:

"Está certo."

Respirei fundo novamente. Fechei os olhos, parecia difícil falar. Mas eu precisava.

"- Thierry, eu tenho uma coisa muito importante para te contar, algo que omiti de você. Sei que vai me odiar para o resto da vida, mas entenda que eu estava apaixonada por você, fiquei com ciúmes. Agora, tanto faz."

Ele me olhava profundamente, sem entender nada.

"- Existe uma pessoa lá fora, que te ama muito. O nome dela é Lucília. Ela não é ninguém da sua família, e nenhuma simples amiga. Ela fora sua noiva. Você sofreu um acidente de carro, antes de vir parar aqui. Por isso, não se lembra de quase nada. As lembranças lhe parecem apenas sonhos. Mas Adrian lembra, só não consegue te dizer tudo."

Pausei a narrativa. A pior parte estava por vir ainda, precisava me recompor. Avistei Judite bem ao longe, parecia pedir algo para as enfermeiras. Ninguém veio nos interromper durante a conversa.

380 dias- Diário de um hospícioOnde histórias criam vida. Descubra agora