XV- Festas longe de casa

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Agora já são 192 dias. Ontem foi dia 25 de dezembro, ou seja: natal. Eu já sabia que minha mãe não viria me buscar para o natal, mas eu nutri um pouco dessa esperança mesmo assim dentro de mim. Passei o natal aqui na clínica mesmo, junto com outros pacientes. A maioria ficou aqui mesmo, tirando a Vera, a Adelaide e pelo menos uns 5, pelo que me contaram. Os nossos enfermeiros e toda a coordenadoria da clínica fez uma ceia para nós, para que pudéssemos ter um "gostinho", literalmente, do natal. Nós rezamos, cantamos músicas tradicionais dessa época do ano, e escutamos bonitas mensagens que os enfermeiros leram para nós. 
Para ser sincera, eu até me diverti um pouco na hora, mas eu estava agoniada e triste. Alguns dias antes do natal, depois que o bando resolveu falar sobre esse assunto e outros de nossa vida lá fora, bateu uma nostalgia dentro de mim. Uma grande vontade de voltar para casa, também se abateu. E então, pedi para que ligassem para tia Maria e a chamassem para me ver. Ela veio no outro dia. Conversamos sobre muitas coisas, perguntei sobre o dia-a-dia lá de casa enquanto eu não estava.

"-E mamãe?"- perguntei

"-Está meio fechada em si."

"-Como assim?"

Ela ficou pensando por um tempo. Revirou os olhos, olhou para a sala que estávamos sentadas. Acho que não sabia como me explicar o que disse.

"-É que tem muita coisa, sabe... Bem, ela já era meio introspectiva, disso você sabe. Mas agora, ela está mais."

"-Minha mãe não é tímida, tia."

"-Não, não falo tímida. Falo que ela é fechada, obscura. Não sei que palavra usar..."

"-Amarga? Rancorosa?"

Ela suspirou.

"-Não, nunca diria isto dela, Ana. E você não devia pensar assim. Ela é sua mãe."

Eu tenho um pouco de raiva da minha mãe, eu confesso. Mas a minha tia tinha razão, então, eu pedi desculpas e continuei.

"- E então?"

"-Ah Ana, sua mãe se distanciou de nós. Nem com sua vó fala direito! Eu tentei falar com ela sobre vir buscar você, para passar o natal com a gente. Mas ela disse que não ia te buscar, e disse que não adiantava nem pressionar. Falou que você estava em tratamento."

Eu me irritei aquela hora. Não estou em tratamento algum, eu não preciso disso. Mas, ela que é a dona dos meus papéis, e eu não posso fazer nada! Ficar na mão das pessoas é realmente a pior coisa que existe. 

"-Discurso mais besta esse tia! Ela sabe que foi ela que me enfiou aqui, para ser livre de mim!"

E eu reclamei, reclamei e reclamei. Nunca havia reclamado tanto assim. Todos sabem que eu sou muito quieta, e que não gosto de reclamar. Mas daquela vez, eu coloquei tudo para fora.

"-Ana, eu te entendo, eu já sei de tudo isso. Mas a sua mãe, a sua mãe... Ela é assim, e é difícil tirar as coisas da cabeça dela desde pequena. Ela sofreu muito, sabia?"

Eu já sei de toda a história: meu pai sumiu logo depois que eu nasci. Bem, eu só sei disso. Queria poder saber mais. 

"-Meu pai largou ela, eu sei, mas ela não precisa desgraçar a minha vida, tia."

"-Seu pai não largou sua mãe, somente. Ele a traiu com várias mulheres. Sua mãe era apaixonada por ele, mas de tanto ser pisada por quem mais amava, ela ficou com o coração frio, duro..."

O horário de visitas estava acabando. As enfermeiras pediram que todos os visitantes que estavam na sala fossem breves. 

"-Olha Ana, eu vou tentar mais uma vez. Mas se ela não deixar, eu não posso fazer nada. É ela quem precisa vir aqui assinar os papéis."

380 dias- Diário de um hospícioOnde histórias criam vida. Descubra agora