XVIII- Uma lembrança perdida

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Hoje é dia 16 de fevereiro de 2014, e me parece que a rotina diária de muitos lá fora voltou ao normal. Bem, no Rio de Janeiro, férias é uma palavra meio que "inexistente", pois a cidade não dorme, nem a noite, e muita gente trabalha. E mesmo que você só esteja ali para curtir a vida sem rumo, você fica praticamente doido com tanta coisa diferente que a cidade oferece. Eu nunca varei as ruas do Rio a noite, e nunca curti a vida "louca" do Rio de Janeiro. Sou uma moça que fica dentro de casa, instruída, cuidadosa e religiosa. Era... Aqui sou apenas uma paciente e religiosa. 
Não que eu odiasse a minha vida, eu só não me via de outra forma. Eu gosto de limpar a casa, e de organizar os armários que ficavam anos sem organização. E se tinha uma coisa que eu muito gostava, era pintar panos de prato, e bordá-los também. Ah! O cheiro dos panos novinhos, das tintas de tecidos, as lindas maçãs vermelhas com suas folhas verdes... Ganhava sempre um pouco de dinheiro todo mês, pois as mulheres da minha igreja os encomendava comigo. Nada mais do que em reais mensais, mas já era-me um agrado, para comprar um sorvete nas tardes de verão, no mercadinho perto de casa, assim que minha mãe saia para trabalhar. No inverno, comprava achocolatado e fazia um chocolate quente com chantilly. Um dia minha mãe me pegou no mercadinho, conversando com algumas amigas. Me deu uma surra em casa. Eu desobedeci, ela tinha medo de eu sair na esquina, e que um doido varrido da cidade carioca me pegasse. E teve uma vez, que na pressa, eu não vesti a minha saia grande, e fui ao mercado de short de praia. Quando voltei em casa, minha mãe já estava lá, e... outra surra. Nesse dia, ela já havia se conformado com as minhas saídas ao mercadinho, mas ao ver que eu havia saído de shorts e desrespeitado a lei da minha igreja...
Mas de que adianta eu lembrar de tudo isso agora? De que me adiantou ela me aprisionar em casa esse tempo todo, e depois me largar aqui, com gente que pode me matar todo dia? Ela me abandonou, e eu tenho certeza. A Judite ligou para ela, e disse-me que a referida estava ocupada demais para vir me visitar, e que eu deveria fazer por merecer.

"- Mas como assim, Judite?"

"-Eu não sei. Sua mãe trabalha demais?"

"- Ela sempre trabalhou demais! O aluguel de onde moramos é muito caro, e tende a encarecer. As pessoas por aqui não perdem tempo para arrancar dinheiro da gente. Além do mais, tem a comida, as roupas, o dizímo..."

"- Lamento, mas eu não posso fazer nada..."

Lágrimas cairam dos meus olhos naquele momento. Desejei que a minha mãe morresse, mas logo afastei este pensamento de minha cabeça. Não valeria a pena. E depois, metade da culpa é minha, por me esconder, e não tentar falar com ela. Talvez, se eu mandasse a carta, ela teria mudado de ideia. E agora, o que fazer? Sentar e esperar, claro. Não tem outra saída. 
Agora já são 244 dias. Essa semana, uma turma de escola veio aqui, fazer uma visita. E como as coisas mudaram! Mas eu vou contar do começo. Era a turma de um colégio particular, chamado "Conceituando", e os alunos eram do 1° ano do Ensino Médio. Quando nos avisaram que eles viriam, eu não achei uma boa ideia. Colocar jovens sadios em meio a loucos? Não, não era bom. Mas quando começamos a conversar com eles, ficamos assustados: eles são piores que nós. As enfermeiras deixaram somente alguns do primeiro andar ter contato com eles, no caso, os pacientes menos "pertubados". Quase que não deixaram o Adrian vir, mas por pouco, Thierry conseguiu convencer as enfermeiras de que ele não desgrudaria do irmão durante a visita. Por falar em Thierry, estou muito preocupada com ele... 
É verão, e naquele dia estava muito quente. O cheiro de mangas podres pairava em certa parte do jardim, perto da onde fica uma casinha dos enfermeiros. Ali tem uma mangueira, mas a manga desta mangueira não é muito boa, é daquela cheia de fiapos. Eu adoro manga, mas não posso comer as daqui. O ruim é o cheiro que fica quando elas caem e apodrecem no chão. O jardineiro só vem uma vez por semana, e ninguém se dá o trabalho de passar um rastelho enquanto isso. Se me pedissem, eu faria contente, e acho que seria muito bom para os pacientes. Sí que não o fazem, e quando as crianças vieram aqui na semana passada, eu morri de vergonha. É como se eles entrassem na minha casa, e ela estivesse bagunçada, e cheirando mal. 
Maggie e eu tomamos café-da-manhã, e nos puseram no jardim. Era uma quarta-feira. Joseph não pôde ir, nem Adelaide eu vi por ali também. Thierry e Adrian também foram para lá. Haviam muitos pacientes por ali, alguns que eu nunca havia visto. Tinha um em uma cadeira de rodas até! Ah, a Vera também foi. Desde que eu gritei com ela, não nos falamos mais. Não gosto dela, e nem ela de mim. Os alunos chegaram logo cedo. Deviam ter 30 e poucos adolescentes ali, e apenas duas professoras e uma moça, que era a estagiária. Dentre os alunos, havia uma conhecida minha da igreja, Júlia. Ao me ver ali, ela ficou espantada.

380 dias- Diário de um hospícioOnde histórias criam vida. Descubra agora