Nicole parecia não acreditar no que estava acontecendo. Numa tarde chuvosa, no meio da Gale Library, o professor Christian Taylor estava sentado à sua frente, declamando poemas de e. e. cummings. Até poderia imaginar que aquilo era um sonho, não fosse pelo frenesi que sentia toda vez que seus olhos se encontravam. Nunca uma pessoa tinha lhe causado tamanho descontrole físico e emocional. Por vezes, sequer conseguia ouvi-lo. Ficava perdida, admirando aquele homem de testa larga, nariz comprido e afilado, queixo proeminente e rosto milimetricamente liso. E sempre que baixava um pouco o olhar, sentia que era fuzilada por Christian, num misto de medo e desejo. Por sorte estavam sozinhos, pois qualquer um que ali entrasse sentiria o império dos feromônios. — Você gosta de cummings? — Christian surpreendeu Nicole com a pergunta, fechou o livro e dirigiu-se até ela. — O quê? — questionou-o, ainda perdida em seus desejos mais íntimos. — Eu perguntei se você gosta de cummings. — Gosto muito! "Chamar a si todo o céu com um sorriso"... — disse Nicky, citando o verso lido havia pouco e sentindo que todo o céu estava diante dela, vendo Christian com o sorriso aberto, em majestática beleza. — Que bom que você gosta. Qual é o seu nome? — Nicole. Nicole Thompson. Mas pode me chamar de Nicky. É assim que todos me chamam. — O.k., Nicky. Meu nome é Christian... — ele não conseguiu concluir, interrompido pela jovem. — Taylor. Eu sei. Fiquei sabendo que você irá ministrar palestras de História na Wachusett. — Vejo que você está bem informada... — Eu sempre procuro saber mais sobre aquilo que me interessa — afirmou Nicole, resoluta. — O que eu devo entender por isso? — O que achar melhor. — Se eu lhe dissesse o que realmente é o melhor, acredito que ficaria decepcionada. — E por que eu ficaria decepcionada? — perguntou Nicky, que já não tirava mais os olhos de Christian. — Porque, na maioria das vezes, o que é conveniente não reflete aquilo que realmente estamos sentindo. — Christian se acomodou na cadeira, levou a mão ao queixo e assumiu um ar professoral. — É a lei da vida em sociedade... antes uma mentira conveniente que uma inconveniente sinceridade. — Então seja inconveniente, professor Taylor. — Por favor, não me chame assim... — ele sorriu, levemente ruborizado. Odiava quando o chamavam dessa forma. Sentia-se mais velho. — Me chame apenas de Christian. — Tudo bem, Christian. Seja inconveniente... — Nicole parecia provocar-lhe com ardis semânticos da melhor qualidade. — O.k.! É você quem está pedindo... — Christian não fugia às boas provocações. — Seria uma inconveniência perguntar a uma jovem aluna a sua idade? — Em primeiro lugar, Christian, devo dizer que aqui, assim como você não é o professor Taylor, eu também não sou uma aluna. — Nicky passou a mão pelos cabelos loiros, finos e lisos, deixando revelar sua delicada orelha, adornada por um filete de pequenas pedras brilhosas. — Em segundo lugar, seria uma inconveniência não fazer tal questionamento, já que, com meus dezessete anos, provavelmente eu tenho idade para ser sua filha. Christian cerrou o cenho após a flechada. Sua idade era realmente seu ponto fraco e aquela jovem à sua frente, que havia revirado seus desejos desde o dia em que se encontraram no estacionamento da WRHS, parecia saber exatamente onde atacá-lo. Por um momento, faltoulhe ar. Não conseguia respirar. — É a lei da sociedade... a verdade, em geral, é inconveniente — filosofou Nicole, assumindo franco sarcasmo. Apesar do ataque frontal, Christian comprou o jogo. — Quantos anos você acha que eu tenho, mocinha? — Trinta e muitos... ou quarenta e poucos... — É um arco muito grande. Tente ser mais objetiva. — Impossível! — Posso saber por quê? — questionou Christian, intrigado. — Porque um homem consegue esconder melhor sua idade. — Nicole sorriu. — Seu rosto, por exemplo, não aparenta mais que trinta e cinco anos. Mas suas mãos têm marcas suficientes para quem já passou dos cinquenta! — Já que você me observou tanto assim... — Christian falava variando entre a raiva pelas afirmações e a satisfação por perceber que Nicole o observara amiúde — ... tente um meiotermo, entre os trinta e cinco e os cinquenta. — Eu diria que você tem quarenta e três anos de idade — afirmou Nicky, categoricamente, não revelando que já detinha essa informação, graças à "pesquisa secreta" de sua amiga Hannah nos fichários da WRHS. — Bravo! — aplaudiu Christian. — Você é boa nisso, Nicky — ele decidiu ir além. — Mas será que essa inconveniência revelada pode atrapalhar, de alguma forma, essa nossa primeira conversa? — Creio que não. Ela atrapalharia se tivesse deixado para ser dita numa segunda ou terceira conversa — agora era Nicole quem assumira o ar professoral. — Revelada desde o início, toda inconveniência sincera é passível de adaptação. Os dois ficaram um longo tempo em uma deliciosa troca de olhares. O desejo mútuo era o sentimento triunfante. O silêncio só era quebrado pela chuva e ventos fortes. Catherine voltou para casa desolada com o acidente que interditara a estrada principal. Ela ainda reuniu forças e chegou ao Ethan's Family Restaurant and Bar a tempo de seu encontro, seguindo pelo caminho alternativo da High Street. Mas apenas entrou no restaurante, conversou rapidamente com o simpático proprietário, que como de costume recebe seus visitantes com extrema elegância e carinho, sentou à mesa por alguns minutos e foi embora. Até os funcionários do restaurante estranharam a rapidez e a tensão de Cathy. Ao estacionar o carro na garagem, percebeu que Edward também já tinha voltado. Ele e seu filho conversavam de forma tensa na sala de estar. Ethan andava de um lado para o outro. Nem deram tempo de Cathy tirar o casaco: — Minha querida, aonde você foi com essa chuva? — questionou Edward, aproximando-se da esposa e lhe dando um forte abraço, para o qual não teve retribuição. — Mamãe, você está bem? — perguntou Ethan, logo em seguida, sem dar-lhe tempo de resposta. — Cathy, você sabe quanto ficamos preocupados com você dirigindo por aí em meio a esse temporal? — Ed fez um leve carinho no rosto da mulher e continuou. — Dirigir com esse tempo ruim já é um perigo pra nós, homens. Imagine pra você... — O que é isso agora, Ed?! Eu sempre fui uma boa motorista... — Cathy tentou esboçar uma resposta, mas logo foi interrompida por Ethan. — Papai, eu tentei impedi-la de todas as formas, mas você sabe como é a mamãe quando coloca uma coisa na cabeça. — Meus queridos, eu precisava ir a Jefferson... — enquanto começava as explicações sobre sua rota, Cathy tirou casaco e boina úmidos e pretendia levá-los para a área de serviço, quando se deparou com Justin descendo as escadas. — O que está acontecendo aqui? — questionou o segundo filho, chegando ao primeiro pavimento. — Eu estava dormindo e acordei com esse falatório aqui embaixo. — Oh! Justin! — Cathy abraçou seu filho com tanta força que parecia tentar fazê-lo voltar a seu útero. — Nos perdoe, querido! Não queríamos atrapalhar seu descanso... Mas seu pai e seu irmão estão fazendo um espetáculo só porque eu tentei ir a Jefferson nessa chuva... — Chuva, não! Está caindo um temporal! — interveio Ethan, em seu costumeiro tom de reprovação. — Mas qual é o problema? — Justin ainda não compreendia o motivo de toda aquela tensão no ar. — Não teríamos problema nenhum, se sua mãe fosse uma ótima motorista — redarguiu Ed. Cathy reagiu imediatamente: — Parem com isso! — a matriarca elevou o tom. — Eu estou cansada dessa história! Não sei de onde vocês tiraram que eu não sei dirigir direito. Sempre fui uma motorista cuidadosa. Nunca arranhei um carro sequer! — Minha querida, fique calma... — Ed tentou amenizar o clima, assumindo seu perfil apaziguador. — Nós só estávamos preocupados com você. O tempo está horrível. Eu mesmo, voltando de Paxton, fui obrigado a parar o carro na 31 e esperar a chuva ficar um pouco mais amena. — Você foi a Paxton hoje? — inquiriu Cathy, com certa descrença. — Eu precisava resolver algumas coisas da nossa filial lá... — revelou Ed, buscando desconversar, seguido por Ethan, ainda em visível tensão. — As vendas da ETS de Paxton caíram muito nos últimos meses. Desse jeito vamos acabar sendo obrigados a fechar aquela filial. — Você está louco, Ethan?! — Justin reagiu à informação desencontrada. — Está fora de questão fechar quaisquer das filiais da ETS nesse momento. As vendas em Paxton caíram na mesma proporção de todas as outras. É só um reflexo imediato da crise econômica. — Como sempre, Justin, você se julga o senhor absoluto da verdade... — o tom sarcástico de Ethan era irascível. — Se você fosse o presidente da empresa, talvez fizesse melhor! — Justin respondeu à altura e os dois se encararam, como sempre. Uma relação de amor e ódio que os acompanhava desde a infância. — Ei, meninos... parem com isso! — da mesma forma, Ed fez sua intervenção. — Parem agora! — o patriarca fez um sinal com a mão e convidou Ethan a acompanhá-lo ao escritório. — Papai, está tudo bem em Paxton? — questionou um desconfiado Justin, vendo-os caminhar em direção à porta do escritório. — Está sim, Justin! Eu só fui lá checar... — Ed respondeu enquanto caminhava, sem dar muita atenção. — Venha, Ethan, quero conversar uma coisa com você. Catherine voltou à sala, depois de guardar suas roupas úmidas. Abraçou o filho e caminharam juntos até a cozinha. — Como você está, meu querido? Eu quase não o vejo mais... Você está trabalhando muito! — Eu estou ótimo, mamãe. — Você precisa dormir mais em casa e parar de ficar cochilando naquele escritório frio de Worcester... — Não se preocupe. Às vezes é necessário... — Às vezes? Tenho visto você fazer isso toda semana. — Essa crise econômica está exigindo algumas mudanças bruscas no comércio. Mas nós vamos passar por ela sem sobressaltos. — Eu sei disso. Nós confiamos em você... no seu trabalho. — Cathy era uma mãe extremamente carinhosa e tinha Justin sob os melhores conceitos. Com ele, as confidências eram fáceis: — Eu já sei o que está acontecendo! Você conheceu algum rapaz, é isso?! — Conheci sim, dona Catherine! — Justin abriu um franco sorriso. — Seu faro continua apurado, hein?! — Eu sabia! Tinha certeza de que você estava dormindo tantas noites fora por algum outro motivo que não a ETS. — Ei! Vamos devagar... — Justin interrompeu a conclusão precipitada de sua mãe. — Eu conheci uma pessoa sim... mas isso foi hoje! — ele coçou a cabeça, e tentou consertar a afirmativa. — Quer dizer, não foi hoje! Conheci ele há três meses, em Boston. Mas só nos reencontramos hoje. — Em Boston? Há três meses? E só se reencontraram hoje? Não estou entendendo... — É... — Justin buscava uma forma de explicar seus inusitados encontros com Gabriel. — É uma longa história, mamãe... — Você está com pressa? Eu não... — Cathy sorriu delicadamente, puxou uma banqueta para o filho e foi para o outro lado do balcão da cozinha. — Temos tempo de sobra pra você me contar tudo! — Cathy abriu a geladeira. — O que você quer comer? — Eu não quero nada, obrigado! Acabei de almoçar com o Gabriel lá no Val's. — Hum! Gabriel? Esse é o nome dele então? Ele está em Holden? Por que não o convidou pra vir aqui em casa, Justin? Ficaram na cozinha por longo tempo. Apesar do frio naquele início de noite, mãe e filho conversaram ao sabor de um pote de sorvete Macadamia Nut Brittle, da Häagen-Dazs. Justin relatou a Cathy todos os detalhes daquela história que nascera sob a égide do destino. Várias vezes foram às gargalhadas com os encontros e desencontros dos dois rapazes. Até que Justin finalmente disse que Gabriel, de fato, estava em Holden, hospedado no Eagle Lake Hotel. — Ele está no Eagle Lake? — Cathy transfigurou-se. — Sim. Foi pra lá no início da tarde, logo depois de almoçarmos no Val's. — Meu Deus! Com toda essa confusão, eu acabei esquecendo de contar... — Cathy respirou fundo. A lembrança a desnorteava. — Eu acabei não conseguindo chegar a Jefferson. Aconteceu um grave acidente na Main Street, bem em frente ao hotel... Não sei se foi com algum hóspede... — Um acidente? Como assim? — Justin deu pulo da banqueta. — Mãe, me conte isso... — Eu não sei direito. Estava indo para Jefferson quando vi a rua interditada. Aquela saída do Eagle Lake é muito perigosa... Parece que um caminhão bateu num carro enquanto descia a Main Street. — Cathy voltou a respirar fundo. — O carro estava capotado... chovia muito... tinha muito sangue... um horror! Eu preferi nem ver aquilo... Dei meia-volta e voltei pra casa. — Cathy preferiu ocultar sua ida ao restaurante, em Jefferson. — Eu vou lá! — um frio percorreu a espinha de Justin. Seria Gabriel a vítima? Sua cabeça dava voltas e ele nem conseguiu ouvir as recomendações de cautela de sua mãe. Abriu a porta dos fundos, correu à garagem, entrou no carro e partiu em alta velocidade. "Será que, depois de toda aquela cumplicidade, o destino seria tão cruel?" Era a única coisa em que conseguia pensar. O chefe de polícia Donald Sullivan fazia as anotações enquanto ouvia o relato desesperado do caminhoneiro e os legistas retiravam o corpo da mulher do Chevy Aveo atingido. Paramédicos prestavam os primeiros socorros ao garoto, ali mesmo no asfalto da Main Street. Gabriel segurava com força a mão de Matthew, enquanto a maca era preparada para subir à ambulância. — O passaporte diz que a mulher se chamava Sybille Genezen. E o nome do garoto é Matthew. Eles são da Bélgica — revelou o chefe Sullivan aos paramédicos. — Chegaram hoje pela manhã aos Estados Unidos — o policial voltou-se para Gabriel e questionou. — Você os conhece? Quem é você? — Não os conheço — disse Gabriel, sem tirar os olhos de Matthew. — Eu sou médico. Eles também eram hóspedes do hotel. Vi o acidente e vim correndo tentar ajudar. — Ele está com a respiração comprometida! — anunciou um dos paramédicos. — Tragam o oxigênio! Vamos preparar para transportá-lo direto para Worcester. Aqui não há recursos! — Eu sou médico do UMass! — avisou Gabriel, sacando seu crachá do bolso do casaco. Não percebeu quando o cartão de Justin caiu no chão, dentro de uma poça d'água. — Vamos levá-lo pra lá! — O.k., doutor. Norton, comunique o UMass pelo rádio — o motorista da ambulância de emergência já estava com o aparelho nas mãos. — Avise-os que tentaremos chegar lá em dez minutos. — Eu vou com vocês! — disse Gabriel, sem soltar a mão de Matthew, enquanto a maca era colocada na ambulância. — Ei! — gritou para Seamus, tirando a chave do Toyota Yaris do bolso da calça e jogando-a para o atendente do Eagle Lake. — Fique com as chaves do meu carro. Vou pedir a alguém da locadora para buscá-lo, o.k.?! — Gabriel, já dentro do veículo de emergência, olhou para Matthew, tentando ajudá-lo. — Apenas respire! Apenas respire! Eu estou aqui com você! — Anote isso... — apontava um dos paramédicos, com a ambulância já partindo em alta velocidade, enquanto outro escrevia rapidamente no prontuário. — A respiração está muito fraca... abaixo de cinquenta. Pressão sanguínea caindo a sessenta. E os batimentos cardíacos estão altos... chegando a cento e quarenta nesse momento! — Ele está em choque! — alertou Gabriel. — Nós sabemos, doutor! — respondeu prontamente o paramédico. — Fluidos e oxigênio não estão ajudando muito! — Não podemos perdê-lo... — Gabriel não largava a mão de Matthew e com a outra pegou seu telefone celular e ligou para Nancy, no UMass. — Nancy, temos uma emergência... estamos indo para o hospital! — Pneumotórax — concluiu o paramédico. — Ao que tudo indica, costelas estão fraturadas e perfuraram o pulmão. O ar está saindo e ocupando a cavidade pleural, comprimindo o pulmão e o coração. Ele está pálido e hipersudoreico. — Pneumotórax hipertensivo? — indagou Gabriel, em visível consternação. — Sim, doutor. Ele não tem muito tempo... Gabriel sentiu a mão de Matthew afrouxar. Lentamente, percebeu que seus olhos fechavam. — Não! Não! Não! — dizia o médico, sôfrego, tentando buscar alguma resposta física do garoto. — Nós vamos salvar você! Confie em mim. Provavelmente foi a última coisa que acreditou ter dito enquanto Matthew estava consciente. A ambulância seguia veloz, sirene ligada. Era um caminho longo até o UMass, em Worcester. Nicole e Christian estavam fazendo amor feito feras selvagens e sequer ouviram as sirenes da ambulância passando em disparada pela Main Street. Estavam entocados no banheiro dos funcionários da Gale Library. Naquele início de noite, ela era a única voluntária na biblioteca e sabia que os seguranças noturnos ficavam restritos à cabine de entrada, no primeiro pavimento. Sem camisa e com a calça aberta, Christian sentou no vaso sanitário, em êxtase e admirando sua bela conquista. Ela colocava de volta a delicada calcinha, passando as mãos sobre a barra do vestido roxo, tentando se recompor depois de todo aquele frenesi. — Está na hora de você ir embora — disse Nicky, em pé, pegando a cabeça de Christian e puxando-a para junto de seu tórax. Ensaiou um cafuné. — Eu preciso fechar a biblioteca e ir pra casa. E eu não posso sair daqui junto com você. — Eu não quero ir embora agora! — Christian levantou-se e abraçou Nicky, fazendo-a flutuar. — Eu preciso de você! — Já está tarde! Não podemos mais ficar aqui... — Nicole beijava-o enquanto falava. Percorreu seu rosto e foi ao ouvido. — Nós podemos nos encontrar logo mais... — Christian sentiu o arrepio alcançar-lhe os dedos do pé. — Podemos ir para a minha casa... — o professor sentia o frescor do suor e dos cabelos da menina, deslizando em seu rosto. — Não sei... Eu não posso dormir fora de casa... — E quem disse que nós vamos dormir?! — Nós podemos jantar em algum lugar. O que você acha? — Jantar? — Christian afastou Nicole por imediato. — Você está louca? Se alguém perceber que estamos juntos, eu posso ser demitido da WRHS! — Ah! Entendi... — Nicky abriu a porta do banheiro. O ar começou a lhe faltar. — Quer dizer que isso vai ser um lance escondido... É isso?! — Mas o que você estava esperando? — Vou fingir que eu não ouvi isso... — Nicole, o que você acha que as pessoas vão pensar ao ver um professor de quarenta e três anos saindo com uma aluna de dezessete? — Essa é outra de suas "leis da sociedade"? — Nós não estamos na Califórnia! — Então você está dizendo que, por aqui, uma garota não pode se apaixonar pelo professor mais velho? — Bem mais velho... — O.k. Bem mais velho... Qual o problema disso? — Em tese não há problema nenhum entre mim e você. Mas não podemos arriscar. Se o diretor da WRHS, ou até mesmo seus pais, ficarem sabendo da nossa relação, eu serei demitido da escola e você poderá ser expulsa. As regras são claras! — Você não conhece meus pais... E não há regras para o amor... — Há sim! — Christian parecia definitivo em sua fala. — Você é um idiota! — dito isso, Nicole começou a atravessar os corredores de prateleiras, em direção ao balcão central da Gale Library. Christian a seguia de perto, vestindo sua camisa amarrotada. — Não fale assim comigo, por favor... Eu gosto de você... quero ficar com você... — ele tentava alcançá-la com as mãos enquanto falava, sem sucesso. — Quero ficar com você, de verdade... Apaixonei-me no dia em que te encontrei naquele estacionamento. Não consigo parar de pensar em você... Agora então... — ao conseguir tocá-la no ombro, foi instantaneamente repelido. A garota parecia tomada pela fúria. — Não encoste em mim! — Nicole olhou bem nos olhos de Christian e disparou. — Amar é um verbo que pode ser conjugado com a mesma intensidade aos dezessete, aos trinta e dois, aos quarenta e três, ou aos sessenta anos de idade. A diferença se estabelece na capacidade de cada um em reconhecer que tipos de pronomes devem ser usados: se pessoais, possessivos ou indefinidos. Ficaram algum tempo naquele entreolhar. Nenhum dos dois disse uma única palavra. Seus corpos ainda estavam sob o efeito daquela feroz relação sexual. A chuva começava a ficar rala e o frio, mais intenso. Não havia mesmo muito o que dizer. O amor nem sempre navega em águas cristalinas. Na maioria das vezes, ele exige um mergulho em águas turvas. A polícia acabara de liberar o trânsito em um dos lados da Main Street quando Justin estacionou o Hummer e correu para o local exato do acidente. A chuva já havia cedido, mas ainda era capaz de encharcar as roupas. Encontrou o ensopado chefe Sullivan tomando os depoimentos de algumas testemunhas daquela tragédia. Avistou o estacionamento do Eagle Lake Hotel e reconheceu o Toyota Yaris branco que Gabriel dirigia. — Donald... — Justin jamais o chamava de chefe, ou policial, ou qualquer coisa do gênero. Ele era seu vizinho e o vira nascer. Sua irmã Nicole era a melhor amiga da filha do chefe Sullivan, Hannah. — O que aconteceu por aqui? — Como vai, Justin? — o policial estendeu a mão em cumprimento. — Uma tragédia, rapaz! Uma tragédia. Ao que tudo indica, uma turista belga estava saindo com seu filho do Eagle Lake e entrou bem na frente do caminhão que descia a Main Street. Ele não conseguiu frear e a acertou em cheio. — Como estão as vítimas? Pelo estado daquele Chevy, posso imaginar... — Justin não conseguiu concluir a frase. O chefe Sullivan foi logo apresentando o relatório. — A mulher morreu na hora, coitada. O filho dela foi levado em estado grave para Worcester, mas duvido muito que escape. Já saiu daqui mais morto do que vivo. Uma pena... eles tinham acabado de chegar aos Estados Unidos... Enquanto ouvia o relato provinciano do policial, Justin acabou descobrindo seu cartão boiando em uma poça d'água suja bem perto de seus pés. Alcançou-o e constatou ser o contato que deixara com Gabriel naquela tarde no Val's Restaurant. No verso, o telefone de sua casa, anotado à caneta, estava completamente borrado e ilegível. Olhou novamente para o carro do médico, no estacionamento do hotel. Teve o ímpeto de ir até lá, procurar por ele e perguntar por que havia jogado fora seu cartão. Por um momento, chegou a imaginar que Seamus poderia ter alguma informação. "Não", concluiu Justin em pensamento. "Apesar do almoço e da conversa agradável, ele pode não ter se interessado por mim como eu me interessei por ele", vagou, em suposições. "Eu sou um idiota mesmo! Ele foi apenas educado com um desconhecido abusado! Eu sou realmente um idiota!" Justin amassou entre os dedos o cartão de visitas da ETS. Não teve tempo de tomar qualquer outra decisão, já que começou a ouvir a voz estridente de tia Mildred se aproximando e em tom de desespero. — Justin! Justin! — gritava Mildred, correndo em direção ao sobrinho. — Meu Deus! Não me diga que foi você quem provocou esse terrível acidente? Você está bem? — Fique tranquila, tia Mildred — Justin, por pleno conhecimento, já adotara um tom enfadado. — Não estou envolvido no acidente. Eu apenas estava passando, vi o movimento e decidi parar e ver o que estava acontecendo. — Eu fiquei tão desesperada! — Mildred falava como se fosse a própria vítima da tragédia. — Joanne ligou para Lilibeth contando sobre o acidente... e Lilibeth ligou pra mim. Imediatamente eu pensei, Oh! Meu Deus! E se foi com um dos meus sobrinhos... o Ethan corre tanto naquele carro! Vim pra cá. Quando eu te vi aqui, fiquei louca! Meus nervos sacudiram... Pronto! Mais um Thompson que vai para o Cemitério Grove! — Que horror, tia! — Justin não sabia se Mildred lhe causava asco ou era digna de gargalhadas. "Como uma pessoa pode ser assim?", questionava-se em pensamento. — Mas é verdade! Meu querido John continua com aquela dor no peito, seu pai andou vacilando com crises hipertensas, sua mãe não se preocupa com nada e a Helen, coitadinha, não consegue segurar um filho naquela barriga. Eu não tenho mais estrutura para viver essas emoções não... — Então o que a senhora veio fazer aqui, tia?! — Ah! Eu não podia deixar de saber o que tinha acontecido. Você conhece Holden... amanhã todos vão estar comentando sobre o acidente. E eu odeio essas invencionices do povo. Preferi verificar in loco os fatos e saber a verdade. Só assim é possível escapar das fofocas desse lugar! E eu estava preocupadíssima que pudesse ser um acidente com um de vocês, meus queridos sobrinhos... Justin deixou que sua tia seguisse tagarelando. Não valia mais a pena prestar atenção naquele discurso burlesco. Estava mais preocupado com o desdém de Gabriel, que jogara fora seus contatos. Mildred correu para o lado do chefe Donald Sullivan e começou a extrair todas as informações da tragédia na Main Street. Por algum tempo, Justin ficou ali, deixando-se lavar pela chuva já rala. Os feixes d'água desciam pelo rosto tal qual lágrimas. A dra. Nancy Taylor deixou a sala de cirurgias emergenciais do UMass e foi ao encontro de Gabriel na área reservada aos médicos daquele andar. O jovem tinha acabado de tomar um banho quente e vestir roupas secas emprestadas por um enfermeiro amigo. Ele estava aflito por notícias de Matthew. — Nancy, como ele está? — perguntou Gabriel de imediato. — Ele agora está estabilizado, mas o quadro não é bom. — O que você acha? Por favor, não me esconda nada... — Além das lesões, o garoto fraturou quatro costelas... uma delas perfurou o pulmão em dois lugares. Ele está sendo operado neste momento para conter a hemorragia. — E qual é o resultado da tomografia? — Essa é a pior parte, Gabriel. Provavelmente ele sofreu uma pancada muito forte na cabeça e os exames revelaram um traumatismo craniano severo. É difícil dizer se ele vai sobreviver. — Mas ele estava acordado até entrar na ambulância. Chegou a me dizer seu nome. — Eu não sou neurocirurgiã, mas essa primeira reação não é incomum em casos assim. — A mãe dele está morta, Nancy. Eles nem são daqui... — Gabriel, apesar de habituado a esse tipo de ambiente, permitiu-se uma emoção aparentemente descompassada para a situação e para seus laços supostamente inexistentes com Matthew. — E se esse menino estiver sozinho agora? Nós não podemos perdê-lo! — Fique tranquilo, Gabe — Nancy abraçou seu aluno e amigo com o carinho de uma mãe. — Ele está nas mãos dos melhores médicos da Nova Inglaterra. Eles farão o que for possível para salvá-lo. Estou me sentindo meio culpada. Lamento que minha sugestão de passeio tenha lhe causado isso, tenha metido você nessa situação. — Você não sabe o que está dizendo... — um filme passou pela cabeça de Gabriel, relembrando em fração de segundos todos os acontecimentos daquele sábado. — De alguma forma, eu fui levado pra lá... eu tinha que estar lá — o médico chorou, como não fazia havia tempos. — Gabe, não fique assim. Vá para casa. Eu cuido de tudo aqui. Assim que tiver notícias do garoto, eu te ligo. — Nem pensar! — apesar da emoção e do cansaço, Gabriel estava resoluto. — Eu não vou abandoná-lo nesse momento. Não me pergunte como, nem o porquê, mas eu sinto que ele precisa de mim nesse momento de escuridão.