VII - Nobres e plebeus

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A comitiva veio assim que o sol nasceu.O garoto já estava acordado.Era um dia sombrio.O corpo de seu pai, que tinha falecido na noite anterior, sendo vencido pela doença que o consumiu por meses, repousava sobre a pira que o garoto tinha levado a madrugada toda para construir.Suas mãos estavam cheias de cortes por ter carregado toras de madeira.Seu rosto, sujo de poeira e terra molhada, tinha linhas por onde as lágrimas tinham escorrido.Mas agora, depois de tudo, depois de passar todo aquele tempo escondido do mundo, apenas ouvindo como a humanidade era cruel e podre, estava pronto para experimentar seu tormento.Seu coração martelava contra o peito infantil, tão cheio de raiva quanto sua cadela, que latia enfurecida para os estranhos que adentravam a pequena fazenda.O homem velho, que parecia ser o médico, desceu do cavalo e se aproximou.Parou ao lado da pira, observando o corpo enrolado em lençóis sujos de terra.

— Você o carregou até aqui em cima? — Perguntou incrédulo para o garotinho sentado na varanda.

Ele não respondeu.Nem mesmo olhou na direção do mais velho.

— Sinto muito por ter me atrasado, mas o governador estava com um caso sério de prisão de ventre... — Disse o homem.

— Dois dias... — Disse o garoto, baixinho.

— O que disse? — Indagou o homem.

O menino voltou seu olhar vazio para ele.

— Eu fui à vila a dois dias, pedir por ajuda para o meu pai.O governador estava perfeitamente bem a dois dias. — Levantou-se e andou devagar na direção do médico — Ele estava tão bem que, depois de me dar um tapa na cara, me mandou dar bosta de ovelha para o meu pai comer.Disse que esse era o remédio para camponeses que não pagam impostos.

— Nós vamos recompensá-lo, garoto.Você será enviado para morar com seu tio na capital.Ele logo assumirá o trono e você terá tudo o que quiser!Não precisa mais ficar aqui nessa fazenda miserável.O que acha, hm?! — Se aproximou mais do garoto, abaixando-se para ficar no nível de seus olhos.

— Meu tio vai me dar um pai novo? — Perguntou.

O homem ia responder, mas assim que abriu a boca, o garoto sacou um punhal da cintura e enterrou-o no céu da boca do homem.O infeliz ajoelhou-se e tombou para frente.O cavalo do defunto se agitou e se apoiou nas patas traseiras, relinchando assustado.Os guardas que acompanhavam o médico se horrorizaram com o que a criança tinha acabado de fazer. Imediatamente desceram dos cavalos e correram na direção do menino.O pequeno lutou contra os homens o máximo que pode, mas não foi capaz de vencê-los.Estava esgotado física e mentalmente.Seus membros doíam de todo o esforço que fez a noite toda.Seus olhos estavam pesados de todas as lágrimas que derramou por seu pai.Quando se viu dominado pelos soldados, os socos e chutes que recebeu deles não pareciam nada comparada a profunda dor que já estava sentindo. Gritou e chorou quando, ao ser amarrado e jogado sobre as costas do cavalo de um dos soldados, viu que nenhum deles se dignou a atear fogo na pira para queimar o corpo de seu pai.Como iria ascender aos céus?A alma de seu amado pai ficaria presa para sempre nessa terra maldita.

Sua cadela, que ficou ao seu lado o tempo todo, tentou correr atrás dele.Mas sua pata ruim a fazia cair.A pobrezinha uivou e latiu enquanto tentava segui-lo.O garotinho gritou por ela, por seu pai, por sua mãe, por Deus...Até só restar seus soluços e lágrimas que não paravam de cair.Depois disso, a exaustão o pegou e a escuridão inundou seu corpo.

*

— Próximo! — Falou o soldado atrás da mesa.

O menino não se moveu.Já estava cansado de ficar naquela fila, o uniforme era grande para seu corpo pequeno e as botas estavam gigantes em seus pés.O quartel cheirava a estrume de cavalo e terra molhada.Podia suportar aqueles cheiros, mas as pessoas...Odiava cada uma delas.O governador o mandou para aquele lugar depois de tudo que aconteceu.Não deixou de pensar em seu pai e em sua cadela.Mas não tinha escolha, era fraco, não podia lutar contra aqueles homens. Seu pai lhe ensinou a lutar, mas era pequeno demais.Começou a pensar que, entrar para o exército, iria transformá-lo num homem mais rápido.

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