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Já era quase meia-noite quando saíram do pub.

O frio estava insuportável e Cora enfiou as mãos nos bolsos do pesado casaco marrom enquanto caminhava para casa. Marco a acompanhava aos tropeços, andando de costas na frente da garota.

"Sabe, não vejo nenhum problema em levar você até a sua casa, de verdade."

"Já disse que não precisa, que eu estou bem. São só cinco quarteirões" e acrescentou sorrindo. "E não é como se algo de perigoso fosse acontecer aqui nessa cidade."

Marco retribuiu o sorriso e encarou os próprios pés, derrotado. Ondas de vapor saíam de sua respiração.

"Você tem certeza?"

"Absoluta. Eu só estou cansada e preciso dormir o restinho de noite que sobrou."

"Bom...a gente se vê então. Se cuida."

Cora assentiu com a cabeça e continuou andando enquanto o garoto se afastava na direção oposta. Marco havia entrado na mesma turma de trainees que ela. Estava no time dos responsáveis pelo design e modelagem de personagens nos jogos, enquanto Cora estava na equipe de testes. Loiro, olhos verdes, sorriso largo e carisma impecável: não demorou muito para que sua popularidade crescesse dentro da empresa. Em apenas seis meses havia conquistado uma dúzia de corações, e parecia que estava tentando conseguir mais um. Cora notava seu recente excesso de gentileza, a quantidade de vezes em que se materializava no departamento de testes ao longo das últimas semanas. Devia dar uma chance ao garoto. Ele era inteligente, engraçado, bonito. Era um cara legal. E seria bom ter alguém por perto agora que morava longe da família. Havia dias em que realmente se sentia sozinha.

Estava quase em frente à sua casa, a Confeitaria Sugar Granny. Quando Cora chegou na cidade, seis meses antes, precisava encontrar um local barato, bem localizado e que não desse muito trabalho para manter. Visitou diversas casas e até uma família que oferecia o próprio sofá para viajantes. Nada parecia muito adequado.

Foi quando um dos recepcionistas do hotel onde estava provisoriamente hospedada comentou sobre a Sugar Granny. A loja ficava numa das principais ruas comerciais, sua fachada espremida entre outros estabelecimentos. Era completamente envidraçada, com molduras em madeira verde-oliva. Lá dentro, mesinhas e cadeiras recostadas ao vidro, em oposição a um imenso balcão repleto de pães, bolos, tortinhas e qualquer outra iguaria que se possa imaginar. O prédio era antigo, reformado de um casarão. Por isso, quando Miss Maddie montou sua tão sonhada Confeitaria, não havia nada de útil para fazer com o andar superior, uma espécie de sótão apertado de um quarto, um banheiro e uma sala. Resolveu alugá-lo por uma pequena quantia para os jovens funcionários da Radiant que não paravam de ir e vir pela cidade. Cora havia se tornado uma hóspede querida, sempre muito silenciosa e educada. Tomava o café da manhã todos os dias na Sugar Granny, cortesia da qual Miss Maddie fazia questão, ia para o trabalho e só retornava ao cair da noite.

Cora alcançou a minúscula porta entre a fachada da Confeitaria e a próxima loja, que dava acesso a seu pequeno sótão. A chave já estava quase tocando a fechadura quando um vulto fez com que se virasse bruscamente. O rapaz asiático estava parado bem atrás dela.

A garota ficou paralizada, a mão ainda erguida, o queixo caído. Ter um estranho parado em sua porta na madrugada de uma noite de inverno costuma causar esse efeito. Cora queria correr, queria gritar, mas algo a mantinha rígida como uma estátua. Podia ouvir seu coração acelerando. Estava tão assustada que não respondeu quando ele disse olá.

"Olá?" o garoto repetiu.

"Quem é você?" parecia ter finalmente encontrado sua voz, embora esta estivesse estranhamente esganiçada.

"Meu nome é Haru... E você deve ser Cora."

"Como sabe o meu nome?"

O rapaz sorriu com os cantos da boca e coçou a cabeça:

"Eu sei que vai soar estranho, mas fui designado a falar com você. Precisamos conversar, e eu preferiria ter essa conversa fora do frio e longe de outros ouvidos... Aqui pode não ser totalmente seguro."

Cora piscou algumas vezes absorvendo a informação. Aquilo tudo parecia muito confuso. Algum alarme ancestral disparou em seu cérebro e ela encontrou uma repentina coragem, elevando seu tom e apontando a chave em direção ao garoto.

"Eu não sei quem é você, nem como diabos você sabe o meu nome. Mas está muito enganado se acha que eu vou permitir que você entre na minha casa, seja lá o que você veio dizer. Me deixe em paz! Vá embora ou eu vou fazer um escândalo. Eu...eu vou chamar a polícia!"

"Mas eu preciso explicar, é uma coisa importante!"

"Você é louco? Não sei porque vem me observando desde o pub, mas..."

Os olhos do garoto, que estavam postos no chão, se iluminaram de repente, encontrando os dela:

"Você percebeu."

"Percebi...? Não importa, eu quero que você vá embora! Não estou brincando, se você não sair agora, vou começar a gritar."

"Está bem, está bem. Estou indo embora, certo?" ele levantou as mãos em sinal de paz. "Mas elas vão entrar em contato com você em breve."

"Elas quem?"

"As outras kitsunes."

Cora observou o rapaz virar as costas e se afastar pela rua deserta. Destrancou a porta com as mãos trêmulas e subiu correndo as escadas. Sentou em sua cama, sentindo lágrimas de nervosismo e alívio brotarem de seus olhos.


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