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"Ainda não consigo acreditar nisso." Edith esfregou os olhos vermelhos.

Cora apenas assentiu. As duas estavam sentadas no chão do quarto, as costas apoiadas contra a lateral das camas. Lá fora os primeiros raios de sol já tingiam a copa das árvores.

Cora havia passado a madrugada inteira em claro, a mente fervilhando. Foi com alegria que percebeu o céu tornar-se mais claro, enxergando nas nuvens alaranjadas um passe livre para acordar Edith. E se a princípio a amiga parecia ofendida por ter sido arrancada da cama tão cedo, bastaram algumas poucas frases de Cora para chamar-lhe a atenção. O que acabou se tornando um ótimo arranjo: Cora recontava sua noite, extravasando o peso que sentia sobre o peito, e Edith escutava, saciando sua curiosidade sem fim.

"Então Haru era o tanuki..." disse Edith, mais para si mesma do que para a colega. "Bom, isso explica muitas coisas."

"Tipo o que?" Cora deu de ombros.

"Tipo porque o tanuki parou de atacar quando você pediu socorro. Ou porque Mahira estava fazendo tanto mistério sobre a criatura. Também me faz compreender uma ou duas coisinhas sobre sua habilidade de entrar nos sonhos alheios..."

Um silêncio constrangido pairou sobre o quarto. As orelhas de Cora ficaram quentes, vermelhas como tomates maduros. Podia perceber que Edith escolhia palavras, indecisa sobre como seguir com o rumo daquele raciocínio. Engoliu em seco antes de dizer, num fiapo de voz:

"Vamos, pode falar. Eu mesma passei a noite inteira tentando entender como fui parar no subconsciente...dele."

Edith soltou um risinho tímido.

"Quando Mahira explicou que você havia invadido um sonho, imaginei se tratar de um acidente, de obra do acaso. Sua mente distraída saiu por aí e, puf, achou uma vítima desavisada. Cheguei até a imaginar que alguém pudesse ter atraído você para uma armadilha, na esperança que te machucassem pra valer. Mas agora...agora acho que você foi até lá porque quis."

"Subconscientemente, você quer dizer."

"Claro" mentiu Edith.

Outro silêncio constrangedor. Cora torceu uma mecha de cabelo entre os dedos.

"O que realmente está me deixando brava é Haru não ter me contado nada antes. Isso e o fato de ele quase ter arrancado a minha perna, claro."

As duas riram.

"Pensei muito durante a noite e sei que Haru não tinha obrigação alguma de me contar nada" a ruiva abaixou a cabeça, derrotada. Afirmar aquilo em voz alta exigia muita força de vontade e uma boa dose de auto-crítica. Causava também um pouco de vergonha.

"Então porque está brava?"

"Passamos por tanta coisa, até eu aceitar a verdade sobre mim mesma...Pensei que o papel de Haru era sempre estar lá oferecendo a mão para mim, mas esqueci que ele possui vida própria e outras iniciadas para trazer até aqui. Acho que estou com raiva por ter me imaginado como alguém especial. E por ele ter deixado eu acreditar que era."

Edith inclinou-se para frente com um semblante piedoso, como se Cora fosse incapaz de enxergar algo que estava bem na frente de seu nariz.

"Você sabe que foi dura demais com ele, não sabe?"

"Em que sentido?"

"No sentido em que você invadiu o subconsciente de um tanuki sem ser convidada, saiu fuçando o celeiro dele e ainda deu umas boas mordidas no rapaz" disse Edith sem nem pestanejar.

"Acontece que eu não tive intenção alguma de fazer nada disso!" a menina parecia ofender-se com as acusações. 

"Eu sei, mas ele também não teve. E se o que ele disse é verdade, que os tanukis não conseguem controlar muito bem os instintos, o garoto deve ter tido uma força de vontade enorme para salvar a sua vida."

Dons de Inari - Parte IOnde histórias criam vida. Descubra agora