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Cora resolvera seguir o conselho de Miss Maddie. Não tinha muita coisa para fazer naquele sábado à noite, de qualquer forma. Tomou um banho, colocou seu velho pijama de moletom e se enfiou embaixo das cobertas. Agora só precisava relaxar e dormir. 

Relaxar foi fácil. O sono, contudo, estava demorando a chegar. Os minutos se arrastavam, e Cora estava começando a se sentir confinada debaixo do cobertor. Seu quarto na parte dos fundos do sótão não possuía janelas, apenas uma precária abertura circular envidraçada logo acima da cama, o que era ótimo para as noites de inverno. Mas naquela noite, ela se sentia sufocada e sozinha. Queria que os pais pudessem estar ali a seu lado, como quando ainda morava no Brasil. Pensou em telefonar, mas não queria demonstrar que estava se sentindo dessa maneira. Eles ficariam preocupados.

Enrolou as cobertas num montinho e as levou para a sala. De alguma maneira, o janelão da parede de tijolos era reconfortante. Ela podia ver os carros passando e o movimento das lojas. Não era exatamente uma companhia, mas era o suficiente para que não se sentisse solitária. Puxou o sofá azul para perto da janela e se ajeitou com as cobertas, enquanto enrolava os cachos ruivos com a ponta dos dedos. Estava decidida a passar a noite apenas contemplando a rua até que todas as lojas fechassem, já que a vontade de dormir não vinha. E justamente por isso, levou apenas vinte minutos para cair num sono profundo.

E de repente, estava correndo por uma densa floresta. A vegetação passava rapidamente à medida em que ia avançando em velocidade para dentro da mata.

"Estou sonhando" disse para si mesma num sorriso.

Cora tinha essa espécie de "dom" desde que era criança. Conseguia com frequência perceber quando estava sonhando. Às vezes, conseguia inclusive controlar seu subconsciente e interferir com o andamento dos sonhos. Seus amigos de escola nunca acreditaram nessa habilidade, mas ela já lera que algumas pessoas eram mesmo capazes de fazer isso. Dessa vez, no entanto, Cora resolveu apenas aproveitar a jornada e esperar com curiosidade o que sua imaginação traria à tona.

Continuava correndo numa velocidade impressionante. Não se lembrava de correr tão rápido assim quando estava acordada. Espere, havia algo errado, algo fora de lugar. Na verdade, não deveria estar correndo assim. Pessoas não corriam assim. E porque as árvores estavam tão altas? Ou será que ela estava baixa demais? O chão parecia muito mais próximo de sua cabeça do que o normal... Olhou para baixo. Suas patas eram finas e escuras, da mesma cor da terra, e as garras se projetavam para frente agarrando o solo com firmeza. Ora, aquilo era novidade.

"Estou sonhando que sou um animal." 

Sua parte consciente conseguiu assumir as rédeas do sonho. Ela parou de correr e começou a olhar-se por todos os ângulos que conseguia. Seu pêlo era predominantemente vermelho, da cor de seus cabelos, exceto pelas patas marrons e pelo peito e pescoço, que possuíam uma pelagem densa e branca como a neve. Havia outra pequena mancha branca, na ponta de sua cauda. Aliás, foi a cauda que permitiu que reconhecesse. Estava sonhando que era uma raposa.

O crepitar de um graveto seco fez com que seu subconsciente retomasse o controle. Se arrastou para trás de um tronco caído no chão. Não era seguro ficar tão exposta, algo lhe dizia que estava sendo observada. Seu focinho absorveu os aromas ao redor de maneira frenética. Era incrível a quantidade de coisas que podia sentir. O cheiro de cada uma das espécies de plantas, a umidade da terra, rastros de animais que haviam passado por ali. Estava literalmente enxergando pelo nariz. A audição também estava bem mais sensível. As orelhas compridas se viravam em todas as direções ao menor ruído. Aparentemente, nenhum sinal de ameaça. 

Pulou por cima do tronco e continuou avançando para o coração da floresta. Não sabia bem o que estava procurando, mas sabia que devia estar procurando alguma coisa. Continuava com o focinho rente ao chão, atenta. Parecia estar andando há uma eternidade quando achou a trilha.

Dons de Inari - Parte IOnde histórias criam vida. Descubra agora