Capítulo Um - Natalia

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Da minha janela consigo ver a água vazando por um furo na mangueira verde e se espalhando pela calçada que ainda está úmida da chuva. Foi uma dessas chuvas de verão, que desaparecem com a mesma velocidade com que surgem em cima de você. O sol do meio da tarde raia com força e faz o pequeno jato de água ficar colorido. Em um cantinho próximo dali, minha horta, com alguns vegetais e temperos mortos, evidenciando a erva daninha que toma conta, verde e saudável, forte como um touro. Pego minha agenda, capa preta, letras douradas, couro elegante. Escrevo: comprar outra mangueira. Comprar sementes para a horta. Coloco a tampa na caneta e imediatamente ela vai parar no meio dos meus lábios. Fico pensativa. Tiro a tampa novamente e risco a última frase. Contratar alguém para cobrir a horta com cimento, escrevo logo abaixo do rabisco. Os pássaros cantam alto, três deles descem até a pequena fonte, que já estava aqui quando me mudei, e inflam quando suas penas encharcam. Com a caneta nos lábios, sorrio. É uma tarde de quarta-feira , eu deveria estar estudando, colocando o trabalho atrasado em dia, ou sei lá, fazendo qualquer coisa útil, ao invés de olhar pela janela como se fosse uma turista em minha própria casa.

Vou até a cozinha para pegar um copo de algo gelado para tomar. No interior da geladeira, que faço questão de deixar suprida com todos os alimentos saudáveis que os sites de nutrição recomendam, pego o litro de suco de laranja e vejo que está vazio. É comum que eu faça esse tipo de coisa, minha cabeça está sempre em outro lugar. Jogo a embalagem no lixo e pego minhas chaves. Não tranco a porta. Nessa cidade ninguém as tranca. Meu sapato faz eco pela calçada de pedras claras, colocadas a mão, uma por uma. Todas se encaixam perfeitamente, eu me certifiquei que fosse assim. Para um olhar desavisado, parece que estão dispostas casualmente, mas não para mim. Sou meticulosa demais para permitir que o destino decida a ordem, ou melhor, a desordem do meu jardim. Mas sempre tem a horta para me lembrar de que não sou perfeita. E a embalagem vazia de suco na geladeira.

Moro em uma cidadezinha no interior, temos em torno de setecentos habitantes, um pouco menos se contar que o Sr. Francisco e o seu Sebastião morreram na semana passada. COVID e morte súbita. Um contra a vacina e o outro contra o costume de comer carne sem gordura. Abro a porta do meu carro, que é claro, está destrancado e subo os degraus da caminhonete. Ouço o ronco do motor e imediatamente engato a ré. Minha mente começa a divagar pelo prazo de entrega do próximo trabalho, vai visitar os tópicos que serão debatidos na reunião do dia seguinte e como vou falar para a minha cliente coisas ruins de uma forma que elas pareçam coisas boas.

A estrada está pior que o normal por causa da chuva, e a cada minuto caio em um buraco diferente, espirrando lama para todos os lados. Moro afastada da cidade, mas próxima o suficiente para que dez minutos de carro me coloque no meio da civilização, o que é um ganha-ganha para mim. Sossego, mas sem solidão. Não muita, pelo menos.

Entro no mini mercadinho, composto por três prateleiras de madeira e um balcão que o açougue e a padaria dividem o espaço. Uma mesinha de madeira feita pelo próprio dono é o caixa. Não há computadores, máquinas de cartão ou qualquer eletrônico ali. Apenas uma calculadora velha, uma caderneta com folhas amarelas de aspecto duro e uma caneta que está com o tubo transparente quebrado até a metade. Não é aqui que costumo fazer as minhas compras, mas é o lugar mais perto de casa para comprar uma garrafa de suco natural. Vou até a geladeira azul desbotada, com o pegador de metal enferrujado e a abro. Ouço uma cadeira sendo arrastada e levanto os olhos, para ver seu Jão levantar gemendo de seu lugar.

- Como vai, fia? - Pergunta, com a  voz seca como asas de cigarra.

- Estou ótima. - Volto a atenção para o interior da geladeira, com suas prateleiras de ferro maltratadas. - E o senhor? - Pergunto, enquanto analiso os sabores de suco. A luz interior está queimada, e sou forçada a curvar a coluna para enxergar lá dentro.

A estrada que trouxe vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora