Capítulo dois - Lana

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Dispenso o garçom com um abano de mão, sem desviar os olhos da anfitriã. Ela me lembra alguém, mas não consigo descobrir quem. Detesto essa sensação, como se tivesse um lugar coçando bem no meio do meu cérebro, que não consigo alcançar nem com o mais afiado dos metais. A forma como ela move a cabeça e franze a testa quando está conversando. Sua boca se inclina em desagrado, mas ela se recupera rapidamente, enquanto acena para o homem que está usando uma camisa de cores berrantes com palmeiras horríveis, na sua frente. Ele segura um copo de whisky, um anel de ouro da grossura de uma roda de triciclo com uma pedra vermelho sangue pende em seu dedo indicador. Na outra mão, um charuto ridiculamente grande balança entre os dedos à medida que ele gesticula no ar, e eu imagino que deva estar explicando algo complexo para a anfitriã. Diria que ela não está concordando com ele.

Ela é alta, pelo menos um e oitenta, cabelos escuros na altura dos ombros em um corte caro, e olhos rápidos como raios. Eles verificam todos os convidados, pousam em seus copos e seus dedos fazem um movimento sutil, chamando o garçom mais próximo. Tudo isso enquanto tenta não bater no assassino da moda à sua frente. Ela aponta com a cabeça para que o garçom vá até o círculo de homens e mulheres que estão em volta da piscina, conversando em trajes de banho, com os copos quase vazios. A conversa tem o tom leve e risos soltos, mas sei que devem estar tratando de negócios sem realmente falar de negócios. Juntos, eles possivelmente possuem a metade do PIB de exportação do estado. Claro que tudo não passa de palpites, considerando o fato de que sou nova na cidade. Mas já vi esse tipo de festa antes. A morena vê algo que a faz erguer os cantos dos lábios, em um sorriso discreto. Corro os olhos pelo ambiente, em busca do que chamou sua atenção. Antes que eu possa descobrir, alguém toca em meus ombros, me obrigando a virar a cabeça.

- Vamos, coloque um pouco de álcool no sangue. Você está com cara de quem vai gritar a qualquer momento. - Tania, minha vizinha, fala. Sorrio, educadamente, e pego o copo de suas mãos. Eu não costumo beber, mas não vejo necessidade de ter essa conversa com ela. - Eu vou te apresentar para algumas pessoas, quem sabe você só precise de uma mãozinha para se enturmar. - Tania coloca as mãos nas minhas costas, me guiando pela varanda, e me levando diretamente até a anfitriã. - Laís. - Ela chama, e dois pares de olhos se viram para nós. - Desculpe interromper, mas quero que conheça a nova moradora da nossa cidade. - Laís, agora sei que é esse o seu nome, e o senhor das palmeiras me olham, ele, desrespeitosamente, ela, com uma pontada analítica por trás das pupilas. O formato de seus olhos novamente me trazem a sensação de conhecê-la. De onde?

- Seja bem-vinda. - Ela fala, sorrindo, de uma forma que parece ser honesta. O velho acena com a cabeça e vira as costas, indo atrás de algum garçom para encher seu copo. - É sempre bom poder contar com mais um cérebro nessa cidade. - Seu sorriso diminui. - Um cérebro pensante. - Ela olha para onde seu companheiro recente está. - Como você se chama? - Pergunta, voltando a prestar atenção em mim.

- Lana. - Respondo. - E obrigada. Tania está fazendo um ótimo trabalho ao me acolher. - Laís balança a cabeça, concordando.

- Bom, Lana, ela é ótima. Se todos nossos moradores tivessem vinte por cento de Tania dentro deles essa cidade seria um lugar melhor. - Ela beberica seu champanhe. - Não que aqui seja um lugar ruim, mas sempre dá para melhorar. - Seus olhos percorrem o ambiente, atentos e metódicos, até pararem em um círculo pequeno de pessoas, próximas ao sofá. - Fiquem à vontade, sintam-se em casa. - Laís faz um gesto insinuando que vai tocar nossos ombros, mas para a um centímetro de distância. Gente rica não gosta de toques desnecessários. Tania para um garçom e pega outra bebida e eu giro o copo nas mãos. Vejo que a anfitriã se junta ao pequeno grupo, mas logo se afasta, quando vê uma mulher entrar pela porta gigante da sala. Caminha até ela, e tenho quase certeza que estaria dando pulinhos se não estivesse no meio de tanta gente. Não dedico muito tempo para a recém-chegada, estou obcecada com o problema de resolver de onde conheço Laís. Eu nunca me aproximei dessa cidade ou cheguei perto de qualquer lugar desse estado, mas aqui estou eu, enlouquecendo por um enigma impossível. Ela abraça a estranha e segura suas mãos, falando algo que desperta o riso na mulher, que usa um lenço branco em volta do pescoço e cai até a sua cintura. Ela é elegante e tudo na mulher grita "tenho dinheiro", assim como em Laís. Pisco e olho em volta. Não tenho ideia de como vim parar aqui. Na verdade, sei exatamente como, mas prefiro me isentar da responsabilidade.

- Vou dar uma volta lá fora, ver se consigo fazer algumas amizades. - Falo, e Tania apenas balança a cabeça. Munida com meu copo, caminho sem rumo, sorrindo de vez em quando, como se estivesse em meu habitat natural. Eles precisam ser muito burros para cair em minha encenação. Sorrio para mim mesma. Eu simplesmente amo a forma como a minha voz anterior gosta de se expressar. Ela é uma artista, assim como eu. Não sou beeeeem uma artista, mas arte é um conceito complexo que dá bastante espaço para interpretação. Se eu fosse uma advogada, seria capaz de fazer uma bela receita de pão com as brechas nas leis desse país. Viu? Vejo arte em tudo em que coloco os olhos. Fica quieta. Falo para mim mesma. Eu moro sozinha nessa linda cidade no meio do buraco do umbigo do fim do mundo, mas se os vizinhos morassem próximos, como na cidade grande, eles com certeza pensariam que eu vivo com uma família de cinco pessoas. Sou barulhenta. Falo sozinha. Canto. Canto enquanto falo comigo mesma. Canto as coisas que falo para mim. Recito meus afazeres do dia em frente ao espelho todas as manhãs. Sou esquecida em um nível que deveria me preocupar, mas meu neurologista garantiu que está tudo bem. Minha vassoura tem um nome: Augusta. Sou viciada em interpretar cenas dos filmes que assisto e Augusta é sempre meu par amoroso. Já dancei muitas valsas contemporâneas à luz das estrelas, só eu e ela. Depois que mudei para cá, três dias atrás, pude levar Augusta para dançar ao ar livre pela primeira vez. Ela amou. Aperto meus lábios, tentando não rir sozinha. Afasto uma mecha de cabelo dos olhos e sento em uma cadeira de jardim. A cadeira é tão linda quanto desconfortável. O osso da minha coluna começa a doer em questão de minutos e me remexo. Cruzo as pernas e faço cara de paisagem. Uma paisagem agradável, é claro. Levo o copo até a boca e tomo um gole grande. Quando sinto o gosto da bebida, tenho vontade de vomitar. Não quero engolir isso. Luto para não fazer cara de nojo e procuro um lugar discreto para cuspir o conteúdo.

- Está tudo bem? - Olho para cima e a mulher recém-chegada está me observando. Seus olhos são amendoados e tem mil tonalidades diferentes nos lugares onde o sol bate diretamente. Concordo com a cabeça, se eu abrir a boca, vou me babar inteira. - Precisa avisar o seu rosto disso. - Sem conseguir evitar, começo abrir um sorriso, e um fio do líquido escorre pelo meu queixo. Muito bem, Lana, você realmente sabe como se comportar em público. A mulher levanta as sobrancelhas, surpresa, e inclina a cabeça, tentando entender o que está acontecendo. Sou obrigada a engolir e minha garganta arde. Meus olhos lacrimejam e meu estômago reclama. Os olhos amendoados olham para o meu copo e se encolhem. - Você está tomando o tempero da salada? - Pergunta, em voz baixa.

- Claro que não. - Respondo, com a voz falhada por causa da garganta maltratada. - Estou? - Isso explicaria muita coisa. Pela primeira vez, presto atenção em meu copo. Não é bem um copo, para ser justa. Mas não se questiona os costumes de ricaços, certo? Você apenas aceita suas excentricidades e finge que é a coisa mais normal do mundo. Como diabos iria saber que eles possuem um copo para temperos?

- A não ser que tenha colocado champanhe no recipiente do tempero, sim, você está. - Ela olha em volta e sei que está segurando o riso quando intencionalmente vira a cabeça mais que o necessário, para que eu não veja seu rosto. Ela está procurando qual garçom está servindo esse angu para os convidados. Lais vem até ela e fala alguma coisa baixo o suficiente para que eu não consiga ouvir. O vento balança o lenço branco da estranha, que está fazendo uma cara de desagrado nada velada. Ela resmunga algo que parece ser "agora não" e começa a se retirar. - Tem alguém servindo vinagre e azeite de oliva para os convidados. - Ela fala para Lais. - Me desculpe por isso. - Diz, olhando em minha direção. - Lais vai te recompensar. - Lais sorri, amistosamente, enquanto a mulher vira as costas e se retira.

- Vamos pegar algo decente para você beber. - Ela estica o braço, me mostrando o caminho. - Tania não está cuidando tão bem de você, no final das contas. - Lais fala e oferece uma taça que pegou de um garçom. - Então, Lana, de onde você é e como veio parar aqui? É parente distante de alguém da cidade?

- É uma longa história e pelo que vejo, você é uma pessoa concorrida. - Aponto com a cabeça para dois convidados que se aproximam de nós, e meu palpite é que não estão vindo falar comigo. - Mas a versão curta é que precisava mudar de ares, então eu coloquei meu dedo em algum lugar aleatório no mapa e me mudei para cá. - Respondo. - Ainda não sei se é uma mudança permanente, aluguei a casa por apenas um mês. - Tomo um gole do champanhe, que alivia um pouco o ardor da minha garganta. - Estou vivendo um dia de cada vez. - Dou de ombros. - Parece que seu tempo acabou. - Os dois homens pedem licença e param ao nosso lado, fazendo uma rodinha. Antes que o primeiro comece a falar, já parei de prestar atenção neles. Até a voz de Lais soa familiar. O som desperta algo conhecido dentro de mim. A coceira voltou com força total. 

A estrada que trouxe vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora