Depois do meu chá rotineiro, não finjo que vou me esforçar para dormir. Simplesmente entro no escritório e me entrego ao trabalho. Hoje não posso me dar ao luxo de ilustrar com o coração, então eu analiso meticulosamente a arte em que estou trabalhando. Tiro dois minutos para processar quais serão meus próximos passos e me jogo de cabeça. É trabalho, mas não deixa de ser prazeroso. Minha mente acompanha as notas do piano que saem do aparelho de som e preenchem o ambiente e minhas mãos fazem a magia acontecer. Sinto meus ombros tensos e paro um instante para relaxar. Raios finíssimos de claridade estão começando a tocar a janela e pasmo ao ver que está amanhecendo. Com certa agonia, olho para o computador, para me certificar de que terminarei a tempo de entregar ao cliente. Não costumo deixar as coisas para a última hora, mas eu assumi mais projetos do que posso dar conta, e agora, bem, preciso dar conta.
Invisto mais duas horas na finalização e retoques na versão final da arte e já faço o envio dos arquivos. São três opções de design para produtos de personagens cinematográficos e estou orgulhosa do resultado.
Tomo outro banho e me preparo para dormir, mas lá embaixo, um barulho alto me faz parar o movimento de puxar o edredom. Sento na cama, ouvidos atentos. Uma porta batendo. Levanto, imediatamente, e dou passos lentos e desconfiados até alcançar o parapeito de vidro da escada. Olho para baixo, mas nada está diferente. Quero voltar para o quarto e fingir que nada aconteceu. Coloco o pé descalço no primeiro degrau de madeira polida. Algo foi arrastado bem abaixo da escada onde estou. Cacete! Um estalo alto anuncia algo se quebrando. Estou sendo roubada. Cidade pequena, segura, uma ova.
Abaixo o corpo e sondo pelos espaços entre os degraus. Uma pessoa está parada lá. Cabelos lisos, que descem até o meio das costas. Está mexendo em uma gaveta da cozinha, sem pressa alguma. Sorrio. Me levanto e caminho. Caminho até a minha esposa.
Ao ouvir meus passos, ela se vira e abre um sorriso lindo.
- Bom dia! - Ela sussurra em meu ouvido, quando me abraça. Cobre meus lábios com os seus e acaricia meus cabelos. - Eu não quis te acordar.
- Para acordar uma pessoa, ela precisa estar dormindo. - Me afasto e dou uma boa olhada nela. Parece estar bem, feliz e descansada.
- Passou a noite em claro de novo? - Ela pergunta, nada surpresa. - Eu ia te levar café na cama, mas já que levantou, vamos comer lá fora?
- Claro. - Ela passa por mim, pó de café em uma mão e a cesta de laranjas na outra.
- Café ou suco? - Minha mulher está sorridente, simpática, sua pele está ótima e no fundo eu sinto uma pontada de mágoa. Esperava que por viajar tanto e ficar semanas longe de mim, ela estaria, sei lá, demonstrando mais que sentiu a minha falta. Umas olheiras e olhar de cachorro que caiu da mudança ajudaria bastante o meu ego.
- Suco. - Me encosto no balcão e vejo as malas dela paradas perto da porta. Tento calcular quando será a próxima viagem e quanto tempo irá durar, mas não trago o assunto à tona. Vou deixar a briga para depois. - Como foram as reuniões? - Pergunto, com um tom casual.
- Foram um saco, como sempre. - Ela chupa o dedo sujo de geleia. - E mesmo que tivessem sido boas, jamais seriam melhores do que estar aqui, com você. - Ela me dá mais um beijo e sinto o cheiro delicioso do seu cabelo. Fecho os olhos para gravar a sensação de tê-la tão perto. Sempre que está em casa, tenho a impressão de que ela irá escorrer pelos meus dedos a qualquer minuto, com um simples toque de seu celular. - Trouxe um presente. - Observo-a dar a volta na ilha da cozinha e ir até onde suas malas estão, abrir a maior delas e tirar um pacote retangular lá de dentro. - Espero que você goste, eu arrisquei dessa vez. Fui ousada. - Seus olhos estão ansiosos e ficam encarando minhas mãos, enquanto abro o embrulho prata. - Por favor, faça cara de feliz, mesmo que não goste. - Tenho vontade de rir com a sua aflição. Sempre tão apegadas aos presentes. Pacientemente, admiro o conteúdo do pacote. É uma tela em branco. Uma tela de pintura. Demoro alguns segundos para ligar os pontos. Ela quer que eu pinte? Vendo minha confusão, desanda a falar. - É porque você sabe, você gosta de ilustrar e tal, pensei que de repente quisesse tentar algo novo. Se desafiar, sei lá. Mas é só uma ideia. E quando olhei para ela, consegui visualizar você ali no deque - suas mãos apontam, desesperadas, para o deque - pintando à luz da lua, com seu chá e sei lá mais o que você coloca dentro dele, e ... você detestou, né?
- Eu achei um presente interessantíssimo. - Respondo, rindo. - Com certeza será um desafio, nisso você tem razão. - Coloco a tela na bancada e jogo meus braços em torno do pescoço dela. - Eu amei, de verdade. Mas você terá de posar para eu te pintar. Vai ser a minha musa. Topa?
- Eu vou adorar. Vou precisar tirar a minha roupa? - Minha nuca arrepia quando ela cochicha em meu ouvido.
- Sinto dizer, mas vai. - Mordisco sua orelha e antes que eu termine, ela já está tirando o meu pijama.
* * * * *
A claridade da janela me desperta. Não é bem uma janela, é uma parede de vidro que dá diretamente para a floresta. Aqui de cima, a vista é linda. Estou sozinha na cama, mas o lugar ao meu lado está mexido, o que é mais do que normalmente eu tenho. Me espreguiço e fico admirando o pedaço de céu azul em contraste com o verde. Pássaros enormes voam no alto e várias borboletas passeiam nas árvores mais próximas.
- Acordou para fazer o dia mais lindo? - Sua voz invade o quarto e na mesma hora sinto que a casa não é tão grande assim. Ela completa todos os espaços vazios. O edredom é levantado e seu corpo se encaixa no meu. Saudade de uma conchinha, né minha filha? - Trouxe seu café na cama, afinal. Com a diferença de que o café é da tarde. - Minha barriga ronca.
- Por que não avisou que estava vindo para casa? - Pergunto. Nós nos falamos pouco. Parte pelos horários malucos dos voos, parte por ela estar sempre em reunião. Quando ela acorda eu estou indo dormir e quando eu acordo, ela está incomunicável. Desvantagens de ser uma pessoa que troca o dia pela noite. Sento na cama e ela arruma a bandeja em meu colo.
- Porque eu queria fazer uma surpresa. - Delicadamente, coloca uma uva em minha boca e seus olhos observam meus lábios enquanto mastigo. - Também não tinha certeza se conseguiria voltar hoje e não queria criar falsas esperanças. Mas aqui estou eu, e é só o que importa. Eu, você e aquela tela branca. - Ela me entrega o copo com suco e aponta para as torradas com geleia. - Estão uma delícia. Sabe, mal posso esperar para ver você toda suja de tinta. Será a primeira vez que eu vou te ver sem estar toda perfeitinha. Não que isso seja uma crítica. - Ela se apressa em falar. - Mas desde que te conheço, imagino como você seria toda molhada da chuva, suja de terra e com uns gravetos no cabelo.
- Também não lembro de te ver toda enlameada e com aparência de quem mora no mato. - Falo, e dou uma mordida na torrada.
- Mas nós moramos no mato. - Ela olha pela janela. Seu celular toca antes que ela continue o raciocínio. Reviro os olhos e foco na bandeja. - Preciso atender, amor. É trabalho. - Sua voz tem o tom de desculpas que eu já conheço bem. Ela levanta e sai do quarto para atender.
Nos conhecemos em um evento de caridade, onde eu fui para fazer uma doação e ela foi para fazer network com os ricos da capital. Namoramos por seis meses e casamos há três anos. Desses três anos, acho que ela passou pelo menos dois viajando. Eu sabia que seu trabalho exigia reuniões e eventos por todo o país e muitas vezes fora dele, mas a frequência aumentou muito depois dela ter subido de cargo. Começou como vendedora em uma das lojas em que vendia computadores, e hoje está na lista para se tornar vice-presidente da América- Latina de uma empresa multinacional que desenvolve e distribui todos os tipos de produtos digitais que se possa imaginar. Se é digital, por que precisa ir pessoalmente, é o que perguntei e a resposta foi: o produto é digital, mas os contratos são fechados olho no olho, com reuniões, powerpoint, eventos onde potenciais clientes do atacado vão estar e ela precisa supervisionar tudo isso, fazer o "aquecimento", e sabe Deus o que isso significa. Com a visão periférica, vejo-a encostar na moldura da porta e sei o que ela vai dizer antes que abra a boca.
- Preciso ir para a Argentina. - Sua voz é triste. - Um cliente quer voltar atrás em um contrato milionário e o Roger quer que eu resolva isso. Desculpe, amor. - Seus passos são silenciosos quando se aproxima e beija o topo da minha cabeça. - Volto o mais rápido que puder. Prometo. - Não discuto. Concordo, sem levantar os olhos, com medo das lágrimas caírem.
- Tudo bem, Lilian. - Respondo, simplesmente. Ela se vira e vai em direção ao closet. Não faço nada além de encarar o enorme leão tatuado em suas costas. É a parte do seu corpo que vejo com mais frequência.
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A estrada que trouxe você
Любовные романыRio Vermelho é uma cidade pequena, cheia de belezas naturais, onde as pessoas não trancam suas casas ou constroem muros. Natália decidiu se afastar da loucura da cidade grande, fez amigos e criou raízes nas entranhas desse vilarejo, que está longe d...